quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

yahoo #26

não consegui acabar esse texto para o dia do aniversário de são paulo (25 de janeiro) e saiu um dia depois, mas não acho que foi por isso que teve tão pouca repercussão. não importa, achei que ficou legal e tem umas coisas aí que venho pensando faz tempo. enfim, o show não pode parar e já está no ar "o país da internet moleque", sobre a bem humorada relação dos brasileiros com o tumblr. simbora.

de vez em quando chamo são paulo de gotham city (não é exclusividade minha, claro) e foi sensacional ver esse foto com batman como motorista de busão. ainda mais porque é em fortaleza, minha terra natal. tudo em casa.


SÃO PAULO, VELHA E LOUCA

Tudo em São Paulo é um pouco torto. Cheio de ramificações e um pouco torto, fora do lugar. Com a música não seria diferente. Talvez sejam misturas demais, ou uma combinação peculiar de seriedade com humor autodepreciativo, mas o fato é que poucos artistas (nativos ou não) da cidade se tornaram conhecidos em todo o país (cidade que, aliás, fez ontem 458 anos). Lembro agora de cabeça, e claro que tem mais gente, da Inezita Barroso na década de 1950, d’Os Mutantes no fim dos anos 1960, de Adoniran Barbosa e Os Demônios da Garoa, tardiamente, nos 70, das bandas Titãs, Ira!, Ultraje a Rigor e RPM na década de 80, do rap dos Racionais MCs e do pagode de Exaltasamba, Art Popular e Raça Negra nos 90. Cada uma dessas histórias é diferente da outra, mas todas são profundamente paulistanas. De qualquer forma é pouco perto da enorme quantidade de sucessos musicais brasileiros.

Procurar entender isso, sacar que intensa não-identidade musical é essa que o país às vezes compra e muitas vezes não, acabou virando interesse pessoal desde que comecei a viver aqui em 1994. Mas quando passei de ouvinte amador a profissional – em 2001 fundei com um grupo de amigos o site Gafieiras, com grandes entrevistas musicais, no qual fiquei por uma década –, o que era obsessão leve ficou preocupação aguda.

Então fui acionando túneis do tempo e viajando pelos sambas de Paulo Vanzolini, Geraldo Filme, Eduardo Gudin e Germano Mathias, pelo balanço do Trio Mocotó, Skowa e Branca di Neve, pelas experimentações de Arrigo Barnabé e Rumo (a turma de Ná Ozzetti e Luiz Tatit), pelo rock de Fellini, Akira S e Violeta de Outono, e muito muito rap (Thaide & DJ Hum, Athalyba e a Firma, etc). Até punk. Nessa época já conhecia bem a dupla Mauricio Pereira e André Abujamra (Os Mulheres Negras) e Itamar Assumpção, outras caras cruciais de São Paulo. Quer dizer, só esse pouco mencionado dá uma boa ideia de que é impossível fazer um retrato-falado da música negra, branca, atonal, pop, caipira e o diabo a quatro dessa cidade.


Por isso falei de “não-identidade” e também por causa de um dos textos que mais me fez entender o que é a música popular de São Paulo, e que foi publicado pela Folha de S. Paulo em julho de 2001 (olha o ano do astronauta libertado de Tom Zé, o baiano paulistano, e Mutantes de novo). Nele, o professor e compositor Zé Miguel Wisnik disse que “com exceção da música caipira, guardada tradicionalmente na voz encorpada e reta de Inezita Barroso, em São Paulo não se criaram os gêneros. Aqui eles se encontram, se misturam, se desmancham, são processados e reprocessados e tratados muitas vezes com aquela distância relativizante de que se investem as coisas quando elas são sabidamente de empréstimo”. Tudo é aqui, nada é daqui (nem falarei da grande quantidade de músicos de fora de São Paulo que fizeram seu trabalho na cidade; isso é um grande capítulo à parte).

A impressão que tenho é que em cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Belém, os sons e o ritmo vem antes de tudo, muito antes do verbo. Um exemplo singelo: poucas coisas são tão cariocas quanto um mineiro radicado no Rio. Em São Paulo não. Tudo existe fora, antes, e é nela que tudo se mistura. Não é um rosto fácil de identificar. Nem de gostar também. Daí talvez nasça certa dificuldade do Brasil com a música de São Paulo e, ao mesmo tempo, um fascínio de artistas de tudo que é canto com essa enorme variedade de possibilidades. Em alguns lugares isso se chama liberdade, n’outros é caos mesmo.

Todo esse acúmulo de histórias, desenraizamentos, experiências, paixões, horrores e vivências gerou nos anos 2000 uma das gerações de músicos mais interessantes e (ainda mais) diversas da história de São Paulo. É a terra que continua quebrando o samba no trabalho de artistas como Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Douglas Germano. É onde o rap ganhou corpo e força com gente como Criolo, Emicida, Lurdez da Luz, Rodrigo Ogi, Flora Matos e CaGeBe. É nela que a música instrumental perdeu o medo de ser, de alguma forma, pop e experimental (vide Hurtmold, MarginalS, Bixiga 70 e Guizado). É por onde escoam as novas vozes femininas de Tulipa Ruiz, Anelis Assumpção, Céu, Andreia Dias, Mariana Aydar, Iara Rennó, Luisa Maita e Mallu Magalhães. Falei do balanço moderno de Curumin ou do lirismo de um dos maiores descendentes de Roberto Carlos, o cantor e compositor Marcelo Jeneci? Ora pois, estou falando agora e só arranhando a pontinha desse Minhocão.

Não dá para prever quem deles(as) serão os novos Mutantes, as novas Inezitas, direto da Terra da Garoa para o Brasil (será que é preciso?). Por outro lado, o sucesso de hoje também não é o mesmo do tempo das gravadoras e discos de ouro. Enquanto isso, São Paulo continuará sendo...


p.s. 1: pouco antes de começar a escrever esse texto vi o clipe mais recente de Mallu Magalhães (“Velha e Louca”) e, de repente, a letra da música, tão confessional do atual estado de espírito da cantora, me pareceu uma ótima descrição de São Paulo. Acabou inspirando o título da coluna. “Pode falar que eu não ligo, / Agora, amigo, / Eu tô em outra, / Eu tô ficando velha, / Eu tô ficando louca / (...) / Pode falar, não importa / O que eu tenho de torta, / Eu tenho de feliz, / Eu vou cambaleando / De perna bamba e solta”, canta a ex-menina.

p.s. 2: dias após publicar o texto no Yahoo veio a notícia da morte súbita do diretor desse clipe da Mallu. Paulo Gandra tinha 28 anos e estava em Londres. 

p.s. 3: também após a publicação do texto fiquei sabendo da existência desse vídeo com Criolo cantando Itamar Assumpção e lamentei não ter colocado lá no Yahoo. Depois vi que não ia ter jeito mesmo. Precisava de uma música/video que mostrasse bem claramente o humor paulistano (nada melhor que Mulheres Negras) e não podia ficar sem o clipe da Mallu (afinal, foi a música que deu o título à coluna). Mas aqui a história pode ser reescrita, então escutem só Criolo cantando "O tempo todo", que surgiu na Caixa Preta em interpretação de Seu Jorge.

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