terça-feira, 7 de outubro de 2025

this is absolute scorsese

como disse no post anterior, a edição de outubro da Revista Monet veio com dois textos meus: o sobre o recém-falecido Ozzy Osbourne e este sobre o muito vivo e ativo Martin Scorsese (e que foi a capa da edição). a deixa é a estreia na Apple TV+ do documentário em cinco partes intitulado Mr. Scorsese.

Martin Scorsese, Rebecca Miller e Daniel Day-Lewis

O HOMEM-CINEMA
 
Documentário em cinco partes, estreia do mês na Apple TV+, disseca a vida e a carreira de Martin Scorsese, um dos maiores cineastas da história
 
Prestes a completar 83 anos, Martin Scorsese continua frenético e apaixonado. E muito atento, sempre, ao passado, ao cinema, ao presente e, acima de tudo, à própria mortalidade. Talvez por isso esteja trabalhando como nunca, correndo atrás de muitas coisas ao mesmo tempo. Nos últimos dez anos, por exemplo, Scorsese dirigiu três longas épicos (Silêncio, O Irlandês e Assassinos da Lua das Flores), produziu uma série de TV (Vinyl), contou uma história de Bob Dylan (Rolling Thunder Revue), declarou seu amor à Nova York (Pretend It’s a City), narrou mais uma vez seu amor por artistas que o influenciaram (Made in England: The Films of Powell and Pressburger) e se divertiu atuando como si mesmo (na série The Studio). E até arrumou tempo para abrir seus arquivos para a série documental O Lendário Martin Scorsese, estreia do mês na Apple TV+.
 
Dirigida por Rebecca Miller, a série em cinco partes é um mergulho na vida e obra de um dos maiores cineastas do mundo, com direito a muitas cenas nunca antes vistas de bastidores de seus filmes e entrevistas inéditas com amigos e colaboradores como Robert De Niro, Leonardo DiCaprio, Mick Jagger, Daniel Day-Lewis (marido de Miller), Thelma Schoonmaker, Steven Spielberg, Sharon Stone, Jodie Foster, Paul Schrader, Margot Robbie e Cate Blanchett.
 
“Sou muito grata por ter tido a liberdade artística e o acesso para criar um retrato cinematográfico de um dos nossos maiores artistas vivos. Sua obra e vida são tão vastas e tão envolventes que a obra evoluiu de um longa para uma série em cinco partes ao longo de um período de cinco anos; e elaborar este documentário junto com meus colaboradores de longa data foi uma das experiências mais marcantes da minha vida como cineasta”, afirmou a diretora no release oficial de O Lendário Martin Scorsese.

 

UMA JORNADA PESSOAL
 
O bem e o mal, escolhas, lealdade, culpa, espiritualidade, violência, ambiguidades, pecados, moralidade, redenção, tem de tudo na carreira de Martin Scorsese. Desde o início, nos filmes universitários que fez em meados dos anos 1960, até o presente momento, o diretor assinou 26 longas de ficção, 16 documentários, e mais curtas, comerciais, trabalhos como ator, videoclipes, produções executivas, restauração de filmes antigos e sem dar sinais de parar ou desacelerar.
 
O último filme que lançou, o premiadíssimo Assassinos da Lua das Flores, já tem dois anos de existência, e Scorsese ainda não começou a produção de nenhum novo. É que o diretor precisa ter um projeto com roteiro mais desenvolvido e a certeza de quem pagará por sua realização, e essa conjunção de astros às vezes demora para se alinhar.
 
Então agora, agorinha, não é possível cravar qual será o novo longa de Scorsese: pode ser sobre a banda de rock Grateful Dead, ou um novo filme sobre Jesus (baseado em livro de Shusaku Endo, o mesmo autor que Scorsese adaptou em Silêncio), ou a história de um serial killer no século 19 (The Devil in the White City), ou uma cinebiografia de Frank Sinatra (The Old Blue Eyes), ou sobre a chegada da máfia siciliana em Nova Orleans (Midnight Vendetta), ou um drama policial ambientado no Havaí dos anos 1960/70 com DiCaprio, Dwayne Johnson e Emily Blunt, ou ainda outra parceria com DiCaprio, o drama de época Home (baseado em livro de Marilynne Robinson). Em todos, o cineasta enxerga um fio comum.
 
“Procuro sempre descobrir quem somos como seres humanos, como organismo, e do que são feitos os nossos corações. É isso que acho que estou procurando. Em outras palavras: continuo uma pessoa curiosa”, afirmou Scorsese em entrevista para o jornal inglês The Guardian em 2024. Um ano antes, mais prático, o diretor disse à revista GQ que “estou na idade em que você simplesmente... você vai morrer, não tem jeito. Isso não significa que você não aceite conselhos, nem discuta e argumente, mas chega um ponto em que você sabe o que quer fazer. E você não tem escolha”.

 
“VOCÊ ESTÁ FALANDO COMIGO?”
 
Mas Scorsese sempre soube o que quis fazer, mesmo quando não estava em seus melhores momentos. Foi assim com seus curtas universitários, com sua estreia em longas (o realista Quem Bate à Minha Porta?, 1967) e com seu encontro com o lendário Roger Corman (que o ensinou a dirigir com rapidez e poucos recursos, e assim nasceu Sexy e Marginal, 1972).
 
Seguro no ofício e estimulado pelo amigo John Cassavetes, o diretor resolveu dar um passo além em seu terceiro filme e decidiu falar sobre um mundo que sempre lhe foi familiar, o da máfia da Little Italy de Nova York. Caminhos Perigosos (1973) foi tanto um sucesso de crítica que colocou o nome de Scorsese no novo panteão do cinema norte-americano ao lado de Francis Ford Coppola, Brian De Palma, George Lucas e Steven Spielberg, e ainda por cima marcou a primeira colaboração com o ator Robert De Niro.
 
Sem planos a seguir aceitou o convite da atriz Ellen Burstyn para dirigi-la no drama romântico Alice Não Vive Mais Aqui (1974), que continua uma raridade em sua filmografia por ter uma protagonista mulher, mas rendeu um Oscar a Burstyn.
 
Então veio o encontro, via De Palma, com o roteirista (e futuro diretor) Paul Schrader que tinha acabado de escrever a história de um ex-combatente no Vietnã perdido nas impurezas de Nova York. Scorsese viu os demônios internos do escritor russo Fyodor Dostoiesvski na trajetória do atormentado Travis Bickle (Robert De Niro) e pegou Taxi Driver (1976) para si. O filme ganhou Palma de Ouro em Cannes e se tornou, rapidamente, um marco para o cinema. Scorsese estava com tudo e, pela primeira vez, viu seu mundo ruir.
 
Um dos motivos foi o fracasso de bilheteria de seu único musical, o estilizadíssimo New York , New York (1977), estrelado por Liza Minneli e Robert De Niro. Outro foi o estilo de vida recheado de álcool e cocaína que mergulhou junto com o amigo músico Robbie Robertson durante as filmagens do documentário O Último Concerto de Rock (1978). De Niro quem o resgatou do fosso ao sugerir a história de um pouco conhecido boxeador chamado Jake LaMotta. Touro Indomável (1980) tornou-se mais um clássico instantâneo de sua filmografia.
 
Os anos 1980 foram uma montanha russa de emoções para Scorsese, com direito a O Rei da Comédia (1982), com De Niro e Jerry Lewis, uma sátira pouco compreendida em seu lançamento, mas muito cultuada nos últimos anos; a comédia neurótica Depois de Horas (1985); um tradicional drama de bilhar A Cor do Dinheiro (1986), com Paul Newman e Tom Cruise; e o épico espiritual A Última Tentação de Cristo (1988), um filme muito caro às raízes católicas de sua formação.
 
“A beleza do conceito de Nikos Kazantzakis [autor do livro] é que Jesus tem que suportar tudo o que passamos, todas as dúvidas, medos e raiva. Ele me fez sentir como se estivesse pecando - mas ele não está pecando, ele é apenas humano. E também divino. E ele tem que lidar com toda essa culpa na cruz. Foi assim que o direcionei, e era isso que queria, porque meus próprios sentimentos religiosos são os mesmos. Penso muito sobre isso, questiono muito, duvido muito, e depois tenho uma sensação boa. E depois muito mais questionamentos, reflexões e dúvidas”, afirmou Scorsese em entrevista para a revista Film Comment na época do lançamento de A Última Tentação de Cristo.
 

“EU SEMPRE QUIS SER UM GANGSTER”
 
Vieram os anos 1990 e o cineasta começou a década com mais um clássico instantâneo, Os Bons Companheiros (1990), um violento e pulsante filme de mafiosos estrelado por De Niro, Joe Pesci e Ray Liotta. Com essa mesma energia dirigiu o eletrizante Cabo do Medo (1991), o suntuoso drama de época A Idade da Inocência (1993) e mais um filme de mafiosos, Cassino (1995). A década do cineasta encerrou com dois filmes muito espirituais, e muito diferentes entre si, o budista Kundun (1997) e o urbano Vivendo no Limite (1999).
 
Mas mesmo um diretor estabelecido como Scorsese, com alguns clássicos nas costas, sentiu novos baques nos anos 2000 para conseguir fazer seus filmes. O estupendo Gangues de Nova York (2002), o primeiro filme seu com Leonardo DiCaprio e o segundo com Daniel Day Lewis, foi palco de muitas brigas com o produtor Harvey Weinstein, o que acabou prejudicando sua divulgação. Em O Aviador (2004), o estúdio Warner cortou o orçamento na fase de edição e Scorsese precisou tirar dinheiro do próprio bolso para finalizá-lo. A mesma Warner pressionou o diretor para que pelo menos um dos protagonistas de Os Infiltrados (2006) não morresse para que pudessem dar início a uma franquia, e os executivos ficaram visivelmente tristes quando as primeiras exibições-teste aprovaram a visão do diretor (que, finalmente, ganhou seu primeiro e único Oscar de Melhor Direção).
 
Calejado por décadas de brigas com Hollywood, Scorsese seguiu os anos 2010 sem se abalar. Novamente chamou DiCaprio para protagonizar o thriller A Ilha do Medo (2010), depois fez uma bela homenagem aos primórdios do cinema em A Invenção de Hugo Cabret (2011) e mostrou mais uma vez sua eterna energia em O Lobo de Wall Street (2013). Então, aos 70 anos, meteu o pé no acelerador e na última década produziu sem parar como se pode ver no início do texto.
 
Em conversa com o historiador Richard Schickel, Scorsese confessou que “as pessoas dizem: você se leva muito a sério. Mas essa é a realidade. Estou empacado comigo, então é melhor dar ouvidos a mim mesmo e lidar com isso”. Afinal de contas, o tempo não para e nem Scorsese.

no more tears, mama

na edição de outubro da Monet rolaram mais dois textos, um sobre Martin Scorsese e esse aqui sobre Ozzy Osbourne. quem me conhece sabe que não sou do rock, muito menos do metal, então meu conhecimento sobre Ozzy & Black Sabbath era bem superficial. foi interessante pesquisar sobre o cara, os caras, e (re)ouvir alguns clássicos do grupo que são realmente muito bons ("Paranoid" e "War Pigs", por exemplo).

O PRÍNCIPE LOUCO DAS TREVAS DO ROCK

Documentário inédito No Escape From Now, disponível no Paramount+, reconta a vida de Ozzy Osbourne, um dos maiores ídolos do rock e do heavy metal mundial

Mais de 5 milhões pessoas do mundo todo assistiram a transmissão do último show da banda de heavy metal inglesa Black Sabbath. Foi um sábado, 5 de julho de 2025, em Birmingham, muito próximo ao local de origem do grupo, em 1968. Estavam todos os quatro lá, a formação original: o guitarrista Tony Iommi, o baixista Geezer Butler, o baterista Bill Ward e, claro, o vocalista Ozzy Osbourne. É fato que Ozzy, muito debilitado pelo Parkinson, fez toda sua apresentação sentado em um grande trono preto, mas mesmo assim teve força o bastante para arrepiar todos os 45 mil presentes no estádio. Dezessete dias depois, Ozzy morreu aos 76 anos. 

Ninguém faz ideia de como ele conseguiu viver tanto, afinal de contas foram muitos anos com muitas drogas, além de inúmeros problemas de saúde nas últimas duas décadas. Em 2019, Zakk Wylde, guitarrista e parceiro de longa data, deu uma dica para tamanha longevidade: “ele tem uma espécie de energia, de força, que é maior que King Kong e Godzilla juntos... sério mesmo! Ele é durão!”.

A dureza/resiliência de Ozzy, nascido John Michael Osbourne em 3 de dezembro de 1948, certamente veio de berço. Pai e mãe trabalhavam em fábricas na cidade de Birmingham, a segunda maior da Inglaterra, e tiveram seis filhos, sendo que Ozzy foi o quarto, e o primeiro menino da família (Ozzy foi apelido que ganhou ainda criança). Os oito Osbournes moravam apertados em uma pequena casa de dois quartos e o dia a dia era repleto de dificuldades e obstáculos. 

Na escola, Ozzy descobriu que era disléxico e que as pessoas não entendiam seu jeito de falar. Descobriu também a violência quando, aos 11 anos, foi assediado sexualmente por valentões da escola. Pensou em suicídio. Mas, aos 14, ouviu “She Loves You” dos Beatles e sua vida mudou, então quis ser músico e teve a mais cristalina certeza que seria um rockstar. “Aquela música me fez virar de cabeça para baixo. Meu filho sempre me pergunta: ‘Como foi quando os Beatles aconteceram?’. Tudo o que posso dizer a ele é: ‘Imagine ir dormir em um mundo e depois acordar em outro tão diferente e emocionante que te faz sentir feliz por estar vivo’”, disse em entrevista para o New Musical Express em 2016. 

Só que antes da música acontecer, Ozzy precisou trilhar um caminho incerto: aos 15, largou a escola, e nos anos seguintes trabalhou na construção civil, em fábrica automotiva, em um matadouro, e foi aprendiz de encanador, entre outros trabalhos de curta duração. Aos 17, foi preso roubando uma loja de roupas e passou seis semanas preso porque seu pai não pagou a fiança para que ele “aprendesse uma lição”. 

O que aprendeu foi que precisava continuar procurando a música e, aos 19, viu um anúncio no jornal do bairro: estavam procurando um vocalista que estivesse disposto a trazer algo novo e excitante para o rock. Ozzy se identificou e foi assim que conheceu Geezer Butler e pouco depois Tony Iommi e Bill Ward. 

Então, entre o fim de 1967 e o início de 1968, mais um quarteto de rock se formou na Inglaterra. E o nome? Pensaram em ‘Earth’, uma coisa meio hippie, mas já existia uma banda chamada assim, então alguém lembrou de um filme italiano de horror chamado Black Sabbath (1963), dirigido pelo cultuado Mario Bava. A partir daí um certo tom sombrio e pesado foi adotado, tanto nas apresentações quanto nas músicas. 

Corta para o ano de 1970, quando o Black Sabbath lançou seu disco de estreia (Black Sabbath) e já engatou um segundo (Paranoid), consolidando rapidamente uma sonoridade própria e muito sucesso ao embalo de porradas como “War Pigs”, “Iron Man” e as faixas-titulo. Ozzy, frenético e carismático, deu rosto e voz ao que depois seria chamado de heavy metal. Nascia ali, “O Príncipe das Trevas”. Sob o apelido, Ozzy disse em uma entrevista de 2013, que “é só um nome. Não acordei uma manhã e pensei: ‘Sabe de uma coisa, vou me chamar de...’. Começou como uma brincadeira, e estou tranquilo com isso, sabe? É melhor do que ser chamado de babaca”. 

Durante os anos 1970, Ozzy seguiu com o Black Sabbath por mais seis discos, com maior (Master of Reality, Vol. 4 e Sabbath Bloody Sabbath) ou menor sucesso (Sabotage, Technical Ecstasy e Never Say Die!), e muitos shows, muita estrada e brigas em hotel. Sem falar nas doses cavalares de álcool e cocaína. Em 1978, na gravação de Never Say Die!, as relações pessoais e artísticas dentro do grupo haviam se deteriorado a um ponto sem volta. “A gente vivia muito drogado o tempo todo. Íamos para o estúdio e ninguém conseguia acertar uma música, todo mundo tocando uma coisa diferente, porque estávamos muito chapados; então a gente tinha que parar”, relembrou Tommy Iommi em entrevista nos anos 2000. Todo mundo fazia tudo, mas foi Ozzy quem foi mandando embora em 1979 (por, oficialmente, não ser confiável e ter muitas questões com drogas). 

Nos anos 1980, no início de sua bem sucedida carreira solo, Ozzy Osbourne aperfeiçoou e exacerbou a persona que criara no Black Sabbath: o louco, o roqueiro satanista, o polêmico, o que urina em monumento histórico, e morde morcego no palco e pombo em encontro com executivo de gravadora. Nessa segunda fase da sua vida artística, que vai até meados dos anos 1990, vieram também discos aclamados como Diary of a Madman, Bark at the Moon e No More Tears. 

A terceira fase da vida de Ozzy vai de meados dos anos 1990 até sua morte em 22 de julho de 2025 e tem menos relação com música e mais com sua persona midiática. Tudo começou com o Ozzfest, um festival de música criado em 1996 por Sharon Osbourne, sua segunda mulher e mãe de três dos seus seis filhos, e que durou até 2010. A iniciativa foi baita sucesso comercial e deu uma nova visibilidade ao roqueiro que acabou o levando, junto com parte da família, para um reality show pioneiro lançado pela MTV, The Osbournes (2002-05). Na mesma época do reality, Ozzy descobriu que os tremores que sentia não tinham relação com o tanto de drogas que usou e sim com a doença de Parkinson. 

E seguiu trabalhando, produzindo e vivendo, com direito a reencontros com o Black Sabbath, novos discos, outros realities, muitos shows, o olhar louco de sempre, o humor afiado. Em quase 60 anos de carreira, Ozzy Osbourne vendeu mais de 100 milhões de discos, somando os que fez com o Black Sabbath e os da carreira solo, e fez o que queria do jeito que queria, para o bem e para o mal. Mas tinha uma coisinha que o incomodava. 

Em uma entrevista para a revista Spin em 2023, confessou que “nunca me senti confortável com esse título que me deram – ‘metal’. Porque toco pesado, mas as bandas que são [consideradas metal] são realmente pesadas, e todos nós somos colocados na mesma categoria. Quando você é rotulado em um determinado [gênero], pode ser muito difícil fazer algo um pouco mais leve, uma faixa acústica ou qualquer coisa que você queira fazer. Antigamente, era só rock. Ainda é só rock”.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

diz aí ethan hunt o que cê vai fazer

na edição de novembro de 2023 da Revista Monet falei de Missão Impossível: Acerto de Contas, o sétimo filme da franquia, e agora na edição de setembro da revista falei do oitavo e talvez último Missão Impossível, o grandiloquente e dramático Missão Impossível: O Acerto Final. sinta a adrenalina e o comprometimento do sexagenário astro Tom Cruise.

TODO CARNAVAL TEM SEU FIM

Ao que tudo indica, Missão Impossível: O Acerto Final será a última aventura de Ethan Hunt; mas será que a franquia será aposentada?

O tempo corre com a mesma intensidade de Ethan Hunt, o super agente da franquia Missão Impossível. Basta lembrar que quando o primeiro longa foi lançado, em 1996, Tom Cruise tinha apenas 32 anos. Hoje, ao divulgar Missão Impossível: O Acerto Final, o oitavo filme da série, o ator tem 62. São três décadas evitando a destruição global de todos os tipos de vilanias, sendo que agora o mal tem a forma difusa e megalomaníaca de uma inteligência artificial que ganhou vontade própria. Tom Cruise, ou melhor, Ethan Hunt não quer saber se o pato é macho, ele quer é salvar o mundo. Mas será pela última vez? 

“É o fim mesmo! Não tem ‘final’ no título à toa”, disse o ator ao Hollywood Reporter pouco antes da première mundial em Nova York. Só que a resposta não é tão fácil quando tem muito dinheiro envolvido. Por exemplo, os filmes da franquia continuam indo muito bem nos cinemas, mesmo no pós-pandemia, e como não existem bobos em Hollywood, certamente a Paramount encontrará espaço e justificativa para spin-offs, prequels, sequels e o diabo a quatro. Agora, fica uma dúvida: será que funcionarão ou terão o mesmo apelo sem a presença de Tom Cruise? Só o tempo dirá, mas é difícil imaginar um Missão Impossível sem Ethan Hunt, por mais que o público tenha simpatia por Benji (Simon Pegg), Luther (Ving Rhames) e as mais recentes aquisições, Grace (Hayley Atwell) e Degas (Greg Tarzan Davis). 

Ainda na première de Acerto Final, Cruise afirmou que quer continuar fazendo filmes de ação até os 80 anos como seu ídolo Harrison Ford e, abrindo o sorriso eternamente confiante, disse que “nunca vou parar. Nunca vou parar de fazer filmes de ação, e nem dramas, comédias. Estou sempre animado”. Tanto que pelos próximos anos, o ator já está vinculado à Top Gun 3, a uma muito aguardada sequência de No Limite do Amanhã (além de outros dois filmes com o diretor Doug Liman), a dois novos filmes com o amigo Christopher McQuarrie, a um possível cruzamento de F1 – O Filme com Dias de Trovão e até ao novo filme de Alejandro González Iñarritu. 

O que se especula é que Tom Cruise vai sim continuar produzindo grandes espetáculos para as telonas, afinal de contas nenhum astro de Hollywood é tão comprometido com essa “missão” quanto ele, mas que não quer mais se arriscar tanto fisicamente como é de praxe na saga. Neste oitavo filme, Cruise fica pendurado nas asas de um avião da Primeira Guerra Mundial, cai e se filma em queda livre, enfrenta uma longa sequência subaquática, e se mete numa perseguição de carros dentro de uma gigantesca e perigosa mina. Segundo o próprio, Missão Impossível: O Acerto Final é o acúmulo de todo aprendizado que teve com as façanhas dos sete filmes anteriores. Tudo feito de verdade, na cara e coragem. 

UM ASTRO EM DESAFIOS

Em maio deste ano, o ator foi homenageado em Londres com o BFI Fellowship, a maior honraria do renomado British Film Institute e durante uma hora falou sobre sua carreira que teve início em 1981, quando tinha 19 anos. “Fazer cinema, ser ator, não é o que faço, é o que sou”, disse em certo momento. Mas o mais impressionante neste seu relato, todo disponível no YouTube, é como sua ética de trabalho parece ter nascido pronta. 


Cruise conta que já em seu segundo filme, Toque de Recolher (1981), sua personalidade empírica e curiosa o fez ir a cada departamento (fotografia, edição, distribuição, etc) para aprender em primeira mão como cada escolha é feita. Essa seria sua escola de cinema. E a cada filme, a cada novo ambiente, com novos profissionais e seus estilos próprios, Cruise aprendia um pouco mais. 

E assim foi educado por Francis Ford Coppola (Vidas Sem Rumo), Ridley Scott (Lenda), Tony Scott (Top Gun e Dias de Trovão), Martin Scorsese (A Cor do Dinheiro), Barry Levinson (Rain Man), Oliver Stone (Nascido em 4 de Julho), Ron Howard (Um Sonho Distante), Rob Reiner (Questão de Honra), Sydney Pollack (A Firma), Neil Jordan (Entrevista com o Vampiro), Cameron Crowe (Jerry Maguire e Vanilla Sky), Stanley Kubrick (De Olhos Bem Fechados), Paul Thomas Anderson (Magnólia), Steven Spielberg (Minority Report e A Guerra dos Mundos) e Michael Mann (Colateral). Sem falar em colegas como Paul Newman, Dustin Hoffman, Jack Nicholson, Gene Hackman e Meryl Streep. 

Sempre buscando novas habilidades para o próximo e os próximos projetos. 

UM PRODUTOR EM MOVIMENTO

Em meio a todo esse aprendizado, Cruise criou e expandiu seu próprio universo de ação, entretenimento, thriller e experimentações, a franquia Missão Impossível. É que, em algum momento da primeira metade dos anos 1990, o ator, sempre tão workaholic e controlador, sentiu a necessidade de ser também produtor. Foi olhando o catálogo da Paramount que se deparou com a série Missão Impossível (televisionada de 1966 a 1973, com um chorinho em 1988). “É isso”, pensou. Nem imaginaria que aquela decisão mudaria sua vida. 

Então, durante evento do BFI, ao ser perguntando o que o levou a “reviver” a série em seu primeiro longa como produtor, Cruise brincou: “Eu amava a música-tema”. Mas a verdade logo revelada é que “achou interessante transformar uma série de TV sobre a Guerra Fria em um filme de ação e suspense em permanente movimento”. Especialista em dualidades, máscaras e espetáculo, o diretor Brian De Palma foi a escolha perfeita do produtor Cruise para o primeiro Missão Impossível, lançado em 1996. 

O ator Simon Pegg, que interpreta Benji desde o terceiro filme da franquia, gosta de dividir a saga em duas partes. A primeira é formada pelos quatro primeiros longas, cada um com um diretor diferente (De Palma, John Woo, JJ Abrams e Brad Bird). Era uma franquia e um astro-produtor em busca de uma simbiose perfeita com o diretor que, nestes filmes, sempre funcionaram em maior ou menor grau, mas nunca se sustentaram. 

Já a segunda são os quatro últimos, todos dirigidos e escritos por Christopher McQuarrie. Cruise e seu irmão criativo conseguiram criar uma fórmula bastante ousada que tem início com interesses, desejos e novas habilidades do astro-produtor, bem como locações e sequências de ação, que depois são ligadas e costuradas a uma história. São todos filmes que vão sendo escritos conforme são produzidos. É bem parecido com uma frase que Ethan Hunt fala com bastante frequência quando precisa rapidamente mudar a rota quando imprevistos acontecem: “Eu vou dar um jeito”. 

Durante entrevista para a BBC, Pegg reuniu essas duas partes da franquia numa mesma definição. “Em termos de espetáculo, Tom [Cruise] elevou muito o nível”, afirmou. Não só os filmes viraram uma referência em termos de ação como também são modelos de uma franquia com absurda regularidade na qualidade. “Mas, pra falar a verdade, a jornada dele [Tom Cruise] é bastante simples: ele dá 100% de si em tudo o que faz”, disse Pegg aos risos em entrevista para Greg Williams do canal Hollywood Authentic. 

Consequentemente, o astro-produtor espera também 100% de dedicação de toda sua equipe e que, assim, todos estejam a serviço do espetáculo e do público. Seu irmão-criativo, o diretor Christopher McQuarrie, sabe bem como é esse comprometimento. “Não há ego. E não existe um conjunto específico de regras além daquelas que servem para entreter o público. Não se trata realmente de quem está certo e quem está errado. É tudo uma questão de o que é certo para o público. Isso nos permite eliminar conflitos”, afirmou McQuarrie em entrevista para o site MovieMaker.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

spike & denzel, lee & washington

o novo frila pra Monet, e que saiu nesta edição de setembro da revista, tratou da amizade de décadas de Spike Lee e Denzel Washington e da sua quinta (e talvez última) colaboração: o elogiado Luta de Classes. saca só.

os cartazes de Highest 2 Lowest (Spike Lee) e High and Low (Akira Kurosawa)

IRMÃOS DE SANGUE

O mais novo longa de Spike Lee, Luta de Classes, é também sua quinta colaboração com o ator-irmão Denzel Washington

Eles têm mais ou menos a mesma idade e muita coisa em comum. Spike Lee completou 68 anos em março e Denzel Washington fará 71 em dezembro, e foi no mesmo ano de 1989 que os dois estouraram para o mundo: Spike com Faça a Coisa Certa, seu terceiro longa como diretor, e Denzel com Tempo de Glória, filme que lhe deu o primeiro Oscar. Apenas um ano depois, o diretor e o ator se encontraram para o primeiro trabalho juntos, o estiloso Mais e Melhores Blues. Vieram depois Malcolm X, Jogada Decisiva, O Plano Perfeito e, o mais recente, Luta de Classes. 

Cinco filmes juntos (em 35 anos) estabeleceram mais que uma ligação entre os dois. “Somos irmãos. A gente simplesmente faz o nosso lance porque nos conhecemos bem. Fora que nossas famílias são muito unidas”, afirmou Lee para a Deadline durante sua presidência no Festival de Cinema do Mar Vermelho em dezembro do ano passado. Nessa época, Luta de Classes ainda estava em pós-produção – a premiere mundial foi em Cannes, no mês de maio deste ano –, e Lee passou mais tempo lembrando do grande filme que fizeram, Malcolm X. E de algumas coisas que nunca lhe desceram a garganta. 

“Eles sabem! Eles sabem quem deveria ter ganho!”, berrou o cineasta, meio rindo e meio sério, numa entrevista recente para a Newsweek. Ele estava obviamente falando de Denzel Washington e do Oscar que o ator não ganhou por sua atuação em Malcolm X na premiação de 1993 (quem levou foi Al Pacino por Perfume de Mulher). “Sem querer desrespeitar nenhum ator, mas acho que Denzel é o maior ator vivo atualmente. Quando estávamos fazendo o filme não víamos Denzel, víamos Malcolm X. Víamos o espírito de Malcolm quando Denzel respirava”, completou, mais calmo. 

Intenso, controverso, revolucionário e, acima de tudo, íntegro, Malcolm X foi/é um dos ativistas dos direitos humanos mais importantes do século 20. Sua vida breve – foi assassinado em 1965, aos 39 anos – virou um épico de 3 horas e 22 minutos pelas mãos de Lee e Washington e causou grande impacto na comunidade negra norte-americana. Um dos impactados foi Ryan Coogler, diretor de Creed, Pantera Negra e Pecadores, que assistiu Malcolm X aos 5 anos e sua vida mudou. O filme acabou se transformando também na matriz de personagens que a partir de então se multiplicariam pela filmografia de Lee: o homem negro íntegro, heroico e trágico. O mais recente é David King, de Luta de Classes. 

CÉUS E INFERNOS 

Spike Lee recebeu de Denzel o roteiro de Luta de Classes quando ainda estava envolvido na produção de seu filme anterior, Destacamento Blood, pouco antes da pandemia. A ideia original era mais um remake do cultuado Céu e Inferno (1963), de Akira Kurosawa, mas Lee passou alguns anos reescrevendo para que seu filme fosse uma reinterpretação e não uma refilmagem (como fez em Oldboy – Dias de Vingança). Quando Denzel Washington, o retrato mais bem acabado do homem negro íntegro, entrou na jogada, tudo se acertou. 

“Este é o quinto filme que fazemos juntos. Tem sido uma bênção esse trabalho conjunto entre nós, fazer filmes que as pessoas amam, que se destacam. Mas ele [Denzel] tem falado sobre aposentadoria...”, afirmou Lee ao jornal inglês The Guardian logo após a estreia do filme em Cannes dando a entender que Luta de Classes pode ser o último encontro deles nos cinemas. 

No final de 2024, em turnê para divulgar Gladiador II, Washington realmente deu a entender que pode se aposentar como ator após finalizar certos projetos: o novo encontro com o irmão Lee; ser Othello no teatro e cinema; fazer outro Shakespeare, Rei Lear, no teatro ou cinema ou em ambos; trabalhar novamente com Antoine Fuqua (que o dirigiu em Dia de Treinamento e na trilogia O Protetor) em um épico sobre o general cartaginês Aníbal, o Terror de Roma; trabalhar pela primeira vez com Steve McQueen; e participar da saga Wakanda da Marvel em Pantera Negra 3. 

De todos esses projetos, dois já ganharam vida. Um no teatro (Othello) e outro nos cinemas e streaming (Luta de Classes). E os dois acabaram se unindo de uma outra forma inusitada, pois Washington foi convocado por Lee de última hora para estreia, em competição, de Luta de Classes no Festival de Cinema de Cannes. Só que o tapete vermelho e a exibição do filme seriam em um dia, na França, e ele precisaria voltar rapidamente para Nova York para seguir com a temporada de Othello. Profissional que é, o ator compareceu e ainda recebeu, para sua surpresa e emoção, uma Palma de Ouro honorária, só que precisou sair antes do fim da sessão de estreia para pegar o voo de volta ao teatro. 


Denzel e Spike em Cannes

O PREÇO DA INTEGRIDADE 

Um dilema moral profundo é a base tanto de Céu e Inferno, de Akira Kurosawa, quanto de Luta de Classes, de Spike Lee. Um homem bem sucedido acredita que seu filho foi sequestrado quando lhe pedem resgate, só que os criminosos pegaram a pessoa errada e quem foi levado foi o filho de uma pessoa que trabalha para ele. Ele paga o resgate, e não consegue fechar um negócio tão sonhado, ou não paga o resgate e põe a vida do filho do amigo (que também é melhor amigo de seu filho) em risco? Eis a questão. 

Jeffrey Wright, que interpreta o assistente do personagem de Denzel Washington, ficou muito mexido pelo dilema proposto por, no caso, Lee. “Esse é o mundo em que vivemos agora, onde todos estão à venda e tudo é transacional. Mas acho que podemos fazer melhor. Basta lembrar os filmes que ele [Lee] fez. Veja o que Malcolm X estava falando. Viemos de uma tradição que não se baseava no que você poderia fazer por si mesmo, mas no que você poderia fazer pela sua comunidade. Não se tratava de dinheiro, mas sim de amor”, disse Wright durante a coletiva do filme em Cannes. 

Luta de Classes coloca o espectador no lugar de David King, o personagem de Washington, e o deixa livre para fazer sua escolha diante de tamanho conflito. Mas Lee deixa claro que precisam existir limites morais e, desde o poster do filme até as coletivas de imprensa, tem usado um ditado popular nos Estados Unidos: “all money ain’t good money” (ou, em bom português, “nem todo dinheiro é bom dinheiro”). 

Mas enquanto Kurosawa coloca a discussão em um contexto realista, angustiante e policial, Lee opta pela estilização agitada de um thriller, e que ainda por cima traz ecos de outros filmes seus, tais como Faça a Coisa Certa, Febre da Selva, Irmãos de Sangue, Jogada Decisiva, A Hora do Show e Infiltrado no Klan (co-estrelado por John David Washington, filho de Denzel). É o ‘Spikeverso’ se desdobrando diante dos nossos olhos. 

“Gosto de repetir que meu filme é uma reinterpretação do que o Kurosawa fez, e que por sua vez é uma adaptação de um livro de um autor norte-americano. Aconteceram muitas coisas de um para o outro. O meu é cheio de ação, tem aquela tensão de fazer você roer as unhas, e é engraçado pra c*****”, disse Lee para o ex-jogador de basquete Carmelo Anthony em seu programa ‘7pm in Brooklyn’. E sabemos que quando Lee promete, Lee entrega.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

flutue como uma borboleta, pique como uma abelha

entre trabalhos para o Ministério da Educação e outros para a Forbes Brasil, mais um frila leve e gostoso pra revista Monet: uma costura sobre as sagas Rocky e Creed. sem mais lenga-lenga, o texto...

cartaz polonês de Rocky

NOS RINGUES DA VIDA

Os seis filmes da saga de Rocky Balboa e os três filmes sobre Adonis Creed estão disponíveis entre maratonas e streamings

Década vai, década vem, gerações a perder de vista, e o boxe segue como o esporte referência para histórias de vitórias, derrotas, redenções e superações no cinema. Podem ser cinebiografias de lutadores muito reais como Muhammad Ali (Ali), Jake LaMotta (Touro Indomável), Rocky Graziano (Marcado Pela Sarjeta), James Braddock (A Luta Pela Esperança) ou Rubin Carter (Hurricane – O Furacão). Podem ser ainda peças completamente ficcionais como os notáveis Corpo e Alma, Réquiem para um Lutador, Fat City e Menina de Ouro. Mas nada levou o boxe tão longe, e mostrou tanto da vida e das lutas de um homem como a saga Rocky, criação de Sylvester Stallone. 

Fã de boxe, o ator novaiorquino já tinha quase 30 anos quando sentou para assistir a luta entre Muhammad Ali e Chuck Wepner pelo título mundial em 24 de março de 1975. Aconteceu tanta coisa nos 15 rounds daquela luta – com direito ao azarão Wepner sendo um dos pouco a levar Ali à lona (que mesmo assim ganhou) –, que Stallone ficou dias pensando nela, obsessivamente. Pouco tempo depois sentou diante de uma máquina de escrever e o primeiro roteiro de Rocky nasceu em pouco mais de três dias. 

Até aquele momento Stallone era pouco ou nada conhecido. Em seu currículo, alguns papéis minúsculos em grandes filmes do início dos anos 1970 como MASH, Bananas, Klute e Essa Pequena é uma Parada, e outros pequenos em filmes pouco lembrados como Os Lordes de Flatbush, O Últimos dos Valentões e Corrida da Morte. Mas ali, vendo a história que ele próprio criou sobre um lutador desacreditado em busca de uma segunda chance, sentiu que Rocky Balboa era ele, só podia ser ele. 

Seus agentes à época sentiram que o roteiro tinha futuro e saíram por Hollywood batendo de porta em porta. Todos se interessaram, mas quando ficavam sabendo que Stallone não abria mão de interpretar o lutador, desconversavam. Queriam um Robert Redford, um Ryan O’Neal, um Burt Reynolds, um James Caan, queriam alguém com apelo comercial e branquitude. Ofereceram até US$ 360 mil pelo roteiro se ele ficasse de fora, e em um momento que Stallone tinha pouco mais de 100 dólares no banco e tinha acabado de vender o próprio cachorro para pagar as contas. 

“Eu sabia que se vendesse esse roteiro, e ele se saísse muito, muito bem, eu ia pular de um prédio se não estivesse nele. Não tenho a mínima dúvida. Então, essa é uma daquelas coisas em que você simplesmente arrisca, voa pelo seu próprio ritmo e diz: ‘Preciso tentar. Preciso fazer’. Podia estar totalmente errado e levar muita gente comigo, mas acreditava muito nisso”, disse o ator em entrevista para Michael Watson no especial televisivo The Rocky Story. 

Stallone arriscou tudo e Rocky foi a maior bilheteria do ano de 1976, teve 9 indicações ao Oscar (levou de melhor filme, edição e direção para John G. Avildsen, que poucos anos depois dirigiria Karatê Kid) e se tornou um fenômeno pop ao criar não apenas um, mas dois personagens icônicos (Rocky, obviamente, e seu rival-amigo Apollo Creed). 

Stallone não demorou muito para voltar ao personagem e Rocky II foi lançado em 1979 com o ator também assumindo a direção dessa dramática revanche contra Apollo Creed (Carl Weathers). Rocky torna-se, finalmente, campeão. Três anos depois, em Rocky III, o boxeador está prestes a se aposentar quando é chamado para defender novamente o título contra o jovem James “Clubber” Lang (Mr. T) e chama o agora amigo Apollo Creed para lhe treinar. No mesmo ano de 1982, Stallone também lança Rambo – Programado para Matar e solidifica seu status de estrela mundial. 

Outros três anos se passaram e então Stallone, no auge de sua fama, deu sua contribuição para a Guerra Fria em Rocky IV (e, também em 1985, no segundo Rambo). O astro assume novamente assume roteiro e direção em um filme que se afasta do realismo dos três primeiros e hoje soa inescapavelmente datado, com direito a perda trágica do amigo Apollo Creed, um boxeador vilão soviético (Drago, interpretado por Dolph Lundgren) e um final tão catártico quando ingenuamente esperançoso (“Se eu mudei, se vocês mudaram, o mundo todo pode mudar”, grita Rocky do alto do ringue). 

Rocky IV até fez sucesso comercial, mas foi duramente espancado pela crítica especializada. Stallone tentou se reerguer com o violento Cobra e o divertido Tango & Cash, mas sua carreira entrou numa espiral de péssimas escolhas, incluindo o retorno ao boxe em Rocky V. Lançado em 1990, o filme marca o retorno do diretor do primeiro (John G. Avildsen) e ao realismo da vida de um ex-lutador com problemas financeiros e de saúde. Ninguém se interessou pelo filme e Stallone tanto se arrependeu de fazê-lo que passou anos e anos buscando um desfecho mais honroso para o personagem que criou. 

Rocky Balboa, o sexto e último filme da saga, flagra o personagem recém-viúvo e dono de um restaurante italiano, ao mesmo tempo buscando uma relação melhor com o filho em lutas que não espera vencer. Stallone volta a assinar direção e roteiro em um filme que, lançado em 2006, é orgulhoso de suas raízes e dos dramas de um personagem complexo que passou por poucas e boas. 

CREED, O FILHO DO CARA 

Em 2013, os estúdios MGM anunciaram Creed, um spin-off da saga Rocky para uma nova geração. O foco agora seria o problemático Adonis Creed (Michael B. Jordan), filho de um caso extraconjugal de Apollo Creed, e a direção e roteiro seriam assumidos pelo igualmente jovem Ryan Coogler, em seu segundo longa (o terceiro seria nada menos que Pantera Negra). Stallone volta a encarnar Rocky, dessa vez como mentor do jovem Creed. Lançado em 2015, o enérgico Creed deu uma nova vida ao Universo Rocky. 

O ator e seu personagem voltam em Creed II com direito a um duro acerto de contas com o passado, afinal de contas o rival de Adonis Creed é o russo Viktor (Florian Munteanu), filho de Drago, o homem que matou Apollo. Stallone também assina o roteiro deste filme lançado em 2018 e que talvez seja a última aparição de Rocky Balboa, pois em Creed III, lançado em 2023, o ator não aparece mais nem como produtor executivo. A razão disto pode ser uma briga de décadas pelos direitos do personagem. 

“Acho que nunca terei os direitos de Rocky. Foi feito um acordo sem que eu soubesse, por pessoas que achava que eram próximas, e elas basicamente cederam quaisquer direitos que eu teria. Na época, eu estava tão animado para trabalhar e não entendia que isso era um negócio. Quem diria que Rocky continuaria por mais 45 anos? Nunca usei nenhuma [linha de diálogo] de ninguém — e a ironia é que não sou dono de nada disso. E pessoas que literalmente não fizeram nada, controlam isso”, disse Stallone ao Hollywood Reporter. 

Enquanto Stallone lamenta o futuro de seu personagem, Michael B. Jordan comemora o sucesso da franquia Creed. Em Creed III estreou como diretor e já existem planos para um quarto filme. Hollywood não pode parar.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

dragão é um bicho voraz

na edição de julho da revista Monet saíram dois textos meus. um sobre a saga Karatê Kid e esse aqui, sobre Como Treinar Seu Dragão, filme que tenho certo carinho, pois a trilogia de animações foi uma das paixões da minha filha em dado momento da primeira infância. e assisti o atual live-action com ela no cinema. pro texto da Monet pesquisei muito sobre a autora dos livros que deram origem a esse universo, a inglesa Cressida Cowell, o que acabou virando o fio narrativo da coisa toda.

DRAGÕES: MODO DE USAR 

Depois de três longas de animações e algumas séries, Como Treinar Seu Dragão ganha carne, osso e computação gráfica em elogiada live-action

Era uma vez uma menina que cresceu passando as férias de verão com a família numa pequena ilha de uma casa só na costa da Escócia. Foi lá que ouviu do pai histórias de vikings que moraram lá mais de 1000 anos antes e de dragões que viviam em cavernas nos penhascos. Também foi lá que essa menina começou a escrever e desenhar suas próprias histórias de vikings e dragões. Tinha 9 ou 10 anos. Seu nome, Cressida Cowell, inglesa que mais tarde tornou-se escritora de livros infantis e infanto-juvenis, ocasionalmente também os ilustrando, até que, aos 37, lançou seu grande sucesso, Como Treinar Seu Dragão. 

Publicado em 2003, o livro apresentou ao mundo Soluço, um jovem viking hesitante em manter a tradição de seu povo em odiar e matar dragões. Principalmente após seu encontro com um dragão poderoso, temperamental e muito amigo, o Banguela. O livro foi um sucesso tão grande que Cressida Cowell expandiu o mundo de Soluço e Banguela por outras 11 publicações (a última, How to Fight a Dragon’s Fury, é de 2015). 

“Eu queria escrever uma história sobre um menino que estava com dificuldade para se ‘encaixar’ com os colegas e corresponder às expectativas do pai. Soluço tem onze anos no início do livro. Acho que é uma idade muito interessante, pois é quando uma criança começa a deixar a infância para trás e entra na adolescência. Nessa idade, as crianças começam a se perguntar que tipo de adulto serão. Soluço é muito diferente do pai, e isso é difícil para ele. As crianças muitas vezes pensam que ‘deveriam’ ser como os pais, e pode levar algum tempo para que percebam que não há problema em ser elas mesmas, em encontrar seu próprio jeito de fazer as coisas”, disse, em seu próprio site, a escritora que começou a escrever profissionalmente aos 33 anos, logo após ter a primeira filha (Maisie). Muitos livros vieram depois e mais dois filhos (Clementina e Alexander). 

ilustração de Cressida Cowell para a edição original de Como Treinar Seu Dragão (2003)

DAS PÁGINAS PARA AS TELONAS E TELINHAS 

No entanto, não muito tempo após seu lançamento, os direitos de adaptação do livro de vikings e dragões de Cressida foram comprados pela DreamWorks, a principal concorrente da Disney em termos de animação, e que em sua primeira década de existência criou três franquias de sucesso: Shrek, Madagascar e Kung Fu Panda. Para fazer do livro uma possível quarta franquia, a DreamWorks contratou Peter Hastings (que recentemente dirigiu Homem Cão), mas sua adaptação muito fiel ao livro mirava um público mais infantil, e o estúdio queria mais. Chamaram então Dean DeBlois e Chris Sanders, a dupla que criou, para a Disney, o bem sucedido Lilo & Stitch (2002), e lhes deu carta branca. 

O livro virou mais uma inspiração para o filme, um ponto de partida. E tudo bem para Cressida Cowell. “Não tenho palavras para descrever o quão emocionante é ver suas criações ganharem vida própria na tela grande. Isso é particularmente importante para mim porque é uma história muito pessoal – Stoico foi baseado no meu pai, e a ilha de Berk é um lugar real onde passei muito tempo na infância – então é profundamente gratificante que a história seja contada no filme com tanto coração e emoção, além de uma animação tão linda”, disse a escritora. 

Aliás, um dos grandes achados do primeiro Como Treinar Seu Dragão foi a consultoria de um diretor de fotografia de filmes “de verdade” para dar mais realismo e profundidade de luz e sombra para a animação. O responsável foi o mestre Roger Deakins, conhecido por seus trabalhos com os irmãos Coen, Sam Mendes e Denis Villeneuve. 

Outro grande achado foi o elenco de vozes: Jay Baruchel faz um Soluço frágil, criativo e bem humorado; Gerard Butler coloca seu vigor espartano no chefe Stoico; America Ferrera coloca pitadas de vigor latino na jovem guerreira Astrid; Craig Ferguson é um perfeito Gobber, o Bocão; além dos coadjuvantes Jonah Hill, Christopher Mintz-Plasse, Kristen Wiig, TJ Miller e David Tennant. 

“Foi incrível assistir ao processo de produção do primeiro filme. Levou sete anos para ser feito, e a arte e a criatividade dos animadores, diretores, roteiristas, sem mencionar os atores, foi tudo realmente impressionante. É um pouco alucinante pensar que uma história que começou na minha cabeça agora está dando prazer a tantas pessoas ao redor do mundo”, afirmou a escritora. E, sem pestanejar, declarou que “tudo nos filmes é fiel ao espírito dos livros, todas as mensagens sobre como precisamos cuidar do meio ambiente, das criaturas selvagens e dos lugares neste belo mundo em que vivemos. E o tipo de líderes de que precisamos, líderes gentis, inteligentes e imaginativos como Soluço, que têm ideias criativas”. 

O mundo daquela menina da ilha cheia de histórias então se expandiu, a partir de 2010, em três longas de animação, cinco curtas e quatro séries de TV/streaming. E agora, em 2025, Como Treinar Seu Dragão ganhou sua primeira versão live-action (novamente sob direção de Dean DeBlois). 

Como Treinar Seu Dragão: o live-action de 2025 vs. a animação de 2010

CARNE, OSSOS E MUITO MAIS 

“Me sinto muito protetor com os personagens e esses mundos. Tenho muito orgulho dos filmes de animação, mas senti que poderia colocar um ponto final nisso, como se esses três atos se tornassem agora uma história maior de amadurecimento”, explicou o cineasta Dean DeBlois para o site da Animation Magazine. Mas a verdade anterior e incontornável é que a DreamWorks pretendia fazer a versão live-action de Dragão com ou sem a presença do cineasta e roteirista canadense. 

Só que DeBlois, muito espertamente, virou a mesa, bateu o pé e disse que só faria se tivesse liberdade criativa e corte final. A jogada foi tão eficiente que a DreamWorks até esqueceu que tinha cogitado em fazer o filme sem ele. DeBlois queria, acima de tudo, defender o legado da trilogia em animação (afinal de contas, o co-criador e co-diretor do primeiro, Chris Sanders, estava em outra e dirigiu posteriormente Os Croods, o live-action O Chamado da Floresta e Robô Selvagem). 

“O primeiro filme foi feito às pressas, e então há coisas que poderíamos ter feito ainda melhor. Então decidimos tratar a animação como ‘nossa mais recente exibição de teste’, e que ainda tínhamos tempo e dinheiro para nos aprofundar um pouco mais nos personagens, para enriquecer a experiência, para tornar as cenas de ação, o voo, mais viscerais, mais imersivos, mas também tornar os relacionamentos dos personagens um pouco mais ricos e profundos. Espero que a experiência seja algo que ecoe a familiaridade e a nostalgia do primeiro filme, mas com mais profundidade”, afirmou DeBlois para o site The Wrap. 

No campo da familiaridade, o cineasta chamou o ator Gerard Butler para novamente ser a voz, a agora também o corpo do grande chefe Stoico, bem como o compositor John Powell (autor das trilhas de todas as três animações). Mas o resto do elenco precisou de gente jovem reunida, com destaque para Mason Thames (O Telefone Preto) como Soluço e Nico Parker (Dumbo e The Last of Us) como Astrid. 

A aposta da DreamWorks no live-action de Como Treinar Seu Dragão é tão grande que todo um parque temático sobre o filme foi recentemente inaugurado no Universal’s Epic Universe, em Orlando, Flórida. E uma sequência do longa já tem data de estreia em 2027. 

Do outro lado do Atlântico, Cressida Cowell acompanha com permanente assombro os desdobramentos daquelas histórias que começou a escrever quando criança. “Sempre fui consultada, recebi roteiros e minha opinião foi solicitada, mas também tentei me distanciar e dizer: ‘Sou uma escritora de livros e vocês são os cineastas’. Às vezes, isso pode ser difícil de fazer, mas acho que essa liberdade pode permitir que outros façam seu melhor trabalho”.

terça-feira, 8 de abril de 2025

é preciso dar um jeito, meu amigo

o segundo texto que fiz pra edição de abril da Monet foi também a capa da revista e trata da jornada premiada de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, o primeiro filme brasileiro a ganhar um Oscar. participação especial da colega Flávia Guerra.

TOTALMENTE PREMIADO

Em um dos muitos eventos pré-Oscar, Ralph Fiennes, em campanha por Conclave, deixou a inibição inglesa de lado e interpelou Fernanda Torres, em campanha por Ainda Estou Aqui. “Você é fabulosa”, disse o ator. A carioca tijucana baixou na atriz que pegou as bochechas de Fiennes e disparou “Repete!”. “Você é maravilhosa”, acrescentou. “Obrigada, já ganhei a noite”, finalizou, toda surpresa e orgulhosa. Mas tanto Fernanda Torres quanto Ainda Estou Aqui ganharam muito mais que uma noite de elogios. Ambos tomaram o mundo de uma forma nunca vista antes por um filme brasileiro - nem com Central do Brasil, dirigido pelo mesmo Walter Salles, 25 anos atrás -, e ainda levaram, por exemplo, um prêmio em Veneza, um Globo de Ouro e um Oscar. 

Mas a história de Ainda Estou Aqui teve início em 2015 quando Walter Salles leu o recém-lançado novo livro do amigo Marcelo Rubens Paiva. As famílias Salles e Paiva se conhecem desde a década de 1960, e as crianças iam de uma casa para outra, no Rio de Janeiro. Então toda a ambientação do livro era muito próxima a Walter, que também conhecia a macro história da família, principalmente sobre o desaparecimento, tortura e assassinato do congressista Rubens Paiva, pai de Marcelo, pelo braço forte e mão amiga da ditadura, em 1971. O que Walter não sabia era da história íntima de Eunice Paiva, a mãe de Marcelo.

Porque o livro é sobre a história da família, mas é, acima de tudo, a odisseia de como Eunice, viúva com pouco mais de 40 anos e mãe de cinco filhos, ultrapassou uma tragédia, manteve a família unida, tornou-se advogada e trabalhou pelos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil militar e seus familiares e pela causa indígena. Estoica, silenciosa e discretamente. “As mulheres vão sempre muito mais longe do que os homens. Então, minha tendência é gravitar em torno de filmes com protagonistas femininas, porque elas representarem uma forma de inteligência e uma vivência de mundo que me atrai muito mais do que o universo masculino”, disse Walter em entrevista para o Valor, em janeiro deste ano.

Já Marcelo decidiu escrever o livro, pois era necessário preservar a memória de quem a estava perdendo. De um lado, a própria Eunice, que foi diagnosticada com Alzheimer no início dos anos 2000 (ela morreu em 2018, aos 89 anos). Por outro, o próprio país que, em 2015, começou a ver certos setores da sociedade tentando relativizar ou mesmo glorificar a ditadura. Esse encontro-choque-reconstrução da memória, tanto de uma família quanto de um país, acabou virando o cerne de Ainda Estou Aqui.

O roteiro do filme começou a ser desenvolvido em 2017 por Murilo Hauser e Heitor Lorega para a VideoFilmes de Walter e, em 2021, foi apresentado ao mercado no Festival de Cannes. A expectativa por um novo filme de Walter Salles filmado no Brasil – seu longa brasileiro anterior foi Linha de Passe, de 2008 – resultou na fácil pré-vendas dos direitos do filme para distribuidores independentes de 21 territórios, compromisso da Sony Classics para distribuição nos Estados Unidos, e parcerias com a Globoplay, RT Features e três produtoras francesas. Todo esse movimento financiou parte dos custos de uma produção independente que não utilizou nenhum recurso público e foi assim que as 16 semanas de filmagem de Ainda Estou Aqui tiveram início em meados de 2023.

Walter Salles por Matt Sayles

A MEMÓRIA E O PRESENTE

Filmado cronologicamente em locações no Rio de Janeiro, Ainda Estou Aqui marcou o terceiro encontro de Walter Salles com Fernanda Torres (os anteriores, Terra Estrangeira e O Primeiro Dia, são do início e do final dos anos 1990) e o primeiro do cineasta com Selton Mello. E tudo ocorreu na maior tranquilidade, apesar do tema duro e urgente. Então, num piscar de olhos, o filme teve sua estreia mundial na mostra competitiva do Festival de Veneza em setembro do ano passado, ganhou uma emocionante salva de palmas de 10 minutos e levou um prêmio para o seu roteiro. Foi o pontapé inicial para uma montanha russa de emoções, viagens ao redor do mundo, jetlags, entrevistas, exibições, noites de gala, prêmios e festivais que sugaram o trio Walter-Fernanda-Selton por cerca de seis meses.

“Como disse o próprio Walter na coletiva que mediei em Los Angeles, a campanha de Central do Brasil foi orgânica, espontânea, as coisas iam acontecendo. Nem usavam a palavra ‘campanha’ naquela época. De lá pra cá, o mundo mudou muito e as campanhas também. Ficaram mais agressivas, mais estratégicas e com um investimento muito maior. Para se ter uma ideia, Anora custou US$ 6 milhões para ser feito e US$ 18 milhões para promovê-lo ao Oscar”, explicou Flávia Guerra, crítica de cinema, colunista do Splash/UOL e da BandNews FM e apresentadora do podcast Plano Geral.

Flávia Guerra, Walter Salles, Fernanda Torres e Selton Mello 
na coletiva para imprensa no dia seguinte ao Oscar

“No caso de Ainda Estou Aqui foi tudo mais pensado e muito bem pensado estrategicamente para colocar o filme no centro da cinefilia, né? Foi uma campanha para valorizar o filme e para fazê-lo ser conhecido. Não foram festas, jantares e tal”, disse a jornalista que ainda relembra uma série de “embaixadores” do filme em exibições especiais mundo afora: Sean Penn, Wim Wenders, Guillermo Del Toro, Olivier Assayas, Valeria Golino, Alfonso Cuáron e Alexander Payne.

Mas a grande porta voz do filme foi, sem sombra de dúvida, a atriz Fernanda Torres. Sua elogiadíssima atuação como Eunice Paiva premiada no Globo de Ouro e suas carismáticas aparições em programas televisivos americanos como o de Jimmy Kimmel, bem como sua espirituosa presença nas redes sociais, a fizeram um fenômeno mundial. Quem diria que a Vani de Os Normais e a Fátima de Tapas & Beijos teria fãs como Ariana Grande, Carey Mulligan, Sarah Paulson, Jessica Chastain e Tilda Swinton.

“Fernanda é uma personalidade muito autêntica e acho que essa autenticidade foi ganhando as pessoas. Ela foi internacionalmente o que ela é no Brasil. E muito divertida e articulada, defendendo o tema, o filme, falando com muita propriedade e com humildade ao mesmo tempo. Honrando, como ela fala, o legado de Eunice. Sem falar que ela estava absolutamente bem assessorada em questão de estilo. Um estilo sóbrio que tem a ver com ela e também com a personagem. Tudo foi impecável. Foi um alinhamento dos planetas raro de se ver”, conclui Guerra.

Ainda mais raro é unir tamanho prestígio mundial e elogios da crítica com sucesso de bilheteria. No início de março deste ano, Ainda Estou Aqui ultrapassou a marca de R$ 200 milhões arrecadados mundialmente, sendo que pouco mais da metade veio aqui do Brasil. O público brasileiro, que tão fervorosamente torceu por Fernanda Torres e comemorou o Oscar como se fosse gol de final de Copa, manteve o filme em 500 salas de cinema após vinte semanas do lançamento. A vida realmente presta.

amor, palavra prostituta

na edição de abril da revista Monet tive alegria dupla, dois textos (salve Luís Alberto Nogueira, hermano de longa data). o primeiro, que posto aqui, foi sobre Anora, o grande vencedor do Oscar de 2025. o segundo foi sobre Ainda Estou Aqui, o nosso grande vencedor do Oscar de 2025 (é a próxima postagem). 

agradecimentos a Odair José (o título do texto) e Carlos Reichenbach (o título dessa postagem). sem mais delongas...

EU VOU TIRAR VOCÊ DESSE LUGAR

A 97ª premiação do Oscar, que aconteceu na noite de 3 de março, teve muitos momentos históricos e inéditos: o primeiro negro a ganhar um Oscar de Melhor Figurino (Paul Tazewell por Wicked), o primeiro Oscar para a Letônia (Flow, Animação), o primeiro Oscar para o Brasil (Ainda Estou Aqui, Filme Estrangeiro), o mais longo discurso (Adrien Brody, Melhor Ator em O Brutalista) e a primeira vez que uma só pessoa levou quatro Oscar na mesma noite por um mesmo filme. E nesse caso estamos falando de Sean Baker, o premiado diretor, roteirista, editor e co-produtor de Anora, filme que venceu ainda mais um Oscar, o de Melhor Atriz para Mikey Madison.

Quando subiu pela quarta e derradeira vez ao palco do Dolby Theatre, Baker parecia anestesiado por tanta alegria e surpresa. “Quero agradecer à Academia por reconhecer um filme verdadeiramente independente. Este filme foi feito com sangue, suor e lágrimas de incríveis artistas independentes. Vida longa ao cinema independente!”, disse e fez questão de mencionar o orçamento total de Anora: US$ 6 milhões (dinheiro que provavelmente não pagaria a alimentação para elenco e equipe de qualquer filme ou série da Marvel). 

Durante coletiva para a imprensa brasileira no dia seguinte ao Oscar, a atriz Fernanda Torres seguia curtindo uma certa ressaca de alegria quando relembrou a noite anterior. “Esse Oscar foi muito especial porque foi uma celebração do cinema independente. O discurso do Sean Baker, a atriz que a [Mikey] Madison é. Ela é muito especial. A maneira que eles fizeram Anora é a mesma maneira que a gente fez Ainda Estou Aqui. É cinema de grupo. Eles tinham um budget pequeno e eles fizeram aquilo, eles todos, como a gente”, e mencionou ainda dois outros filmes independentes premiados da noite, a animação letã Flow e o documentário palestino-israelense No Other Land

“Nessa campanha encontrei o Sean Baker algumas vezes e ele me disse que amou o nosso filme. Acho que porque ele reconhece o cinema independente que o Walter [Salles Jr.] também faz. Então, sinto que o Ainda Estou Aqui é um primo de Anora. O deles é sobre a busca por afeto. O nosso é sobre afeto”, afirmou Torres. 

Enquanto a atriz brasileira falava na coletiva, em outro canto de Los Angeles, a jovem protagonista de Anora, a atriz Mikey Madison, buscava algum sentido no caos. “Ainda me sinto flutuando como num sonho. Foi uma noite muito surreal e realmente preciso de um tempo pra digerir a magnitude disso tudo. Claro que me sinto honrada e muito feliz, mas totalmente em choque”, disse em entrevista para a Hollywood Reporter. “Amo todas essas mulheres [que estavam na categoria] e suas performances, fiquei tão feliz de estar junto delas. Vi Fernanda [Torres] e nos abraçamos. Troquei mensagens com Demi [Moore], ele foi muito doce, muito querida. Amo muito ela”. 

Os cinco Oscar ganhos por Anora foram o desfecho de um conto de fadas indie que teve início com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em maio de 2024. Ao total, o oitavo filme de Sean Baker amealhou, segundo levantamento do site Rotten Tomatoes, 196 prêmios. Mas a história, como sempre, começou antes.

CORTA PARA O PASSADO, DIRETOR 

Apaixonado por cinema desde criança, quando sua mãe o levou para assistir alguns clássicos filmes de terror produzidos pela Universal na década de 1930 (Drácula, Frankenstein, A Múmia, etc), Sean Baker trabalhou na juventude como projecionista (aquele que mostra) e taxista (aquele que ouve), e já adulto editou vídeos de casamento (aquele que conta histórias). Juntou tudo isso pra fazer faculdade em ‘film studies’ pela renomada New York University (NYU), mas acabou trancando o ensino superior em 1992 com o objetivo de ganhar experiência prática, e lá se foi trabalhar em filmes institucionais e publicidade, e só se graduou em 1998. 

Dois anos depois, aos 29 anos, dirigiu seu primeiro longa, Four Letter Words. Nos anos 2000 vieram mais dois longas, Take Out (2004) e Prince of Broadway (2008). Os três filmes que fez nos anos 2010 começaram a lhe dar alguma fama no cenário independente americano e mundial: Starlet (2012), Tangerina (2015) e Projeto Flórida (2017), uma história protagonizada por Willem Dafoe. Durante a pandemia, filmou Red Rocket (2021) e começou a trabalhar no roteiro do que viria ser Anora

A ideia original, pensada em parceria com o amigo e ator de todos os seus filmes Karren Karagulian, era de fazer um filme sobre gângsters russos em Nova York. Mas a história não foi para frente e Baker lembrou que alguns dos vídeos de casamento que editou eram da comunidade russa que vive em Brighton Beach, região sul do Brooklyn. Soube então, via Karagulian, sobre uma noiva que foi sequestrada no dia de seu casamento como ameaça da máfia russa. E pensou em relações de poder, em dinheiro, em sexo por dinheiro, e no mundo da prostituição que tem sido frequente em seus filmes desde Starlet, em 2012. 

Mas Baker queria começar a escrever só quando já tivesse o rosto da protagonista e ela veio, doce e raivosa, numa descompromissada sessão de Scream (2022). Era Mikey Madison. Baker e sua mulher, a produtora Samantha Quan, lembraram que tinham visto Madison alguns anos em um papel pequeno em Era Uma Vez em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino. 

“Não queria fazer um filme de gangster russo - já foi feito muitas vezes -, mas ainda queria brincar com os temas de poder, e o que é poder nesta sociedade capitalista senão dinheiro? Então, o que colocaria a protagonista, uma garota de programa, nessa posição? Ela se casa com uma família, mas que tipo de família seria se não fosse uma família de gangster? Ah, a família de um oligarca russo! Ela se casa com o filho de um oligarca russo, um garoto que nunca cresceu”, disse Baker em entrevista para a revista Filmmaker. 

Baker foi então juntando referências mais ou menos diretas para criar Anora, desde a leveza do improviso de Robert Altman à liberdade de Jess Franco, desde o conto de fadas de Uma Linda Mulher a uma família poderosa exigindo respeito em Um Príncipe em Nova York, da luz suja de clássicos urbanos dos anos 1970 como Operação França e O Sequestro do Metrô, de jovens mulheres donas de seu próprio nariz em comédias italianas dos anos 1960 e 70 (A Garota com a Pistola e Por Um Destino Insólito, por exemplo).

Desse liquidificador cinematográfico saiu Anora, um filme que estende o tempo para que seus personagens, e sua história, respirem. Que abraça personagens marginalizados. E que se recusa a dar respostas fáceis para conexões humanas complexas.