quarta-feira, 12 de março de 2025

ajoelhou tem que rezar

na edição de março da Monet rolou texto sobre Conclave, filme mais recente do diretor suiço-alemão Edward Berger e com um elenco da pesada (Ralph Fiennes, John Lithgow, Stanley Tucci, Isabella Rossellini, etc). pesquisei bastante pra entender a história dos conclaves, seu modus operandi, e mal sabia eu, lá no início de fevereiro quando escrevi, que muito provavelmente teremos um conclave ainda este ano: Papa Francisco anda muito mal de saúde, então pode renunciar ou morrer mesmo. também quando escrevi ainda não tinha acontecido o Oscar, então acrescentei agora menção à estatueta por Melhor Roteiro Adaptado. no mais, boa leitura. e depois veja o filme que é um dos melhores dessa safra.

Ralph Fiennes, o protagonista de Conclave

MIL TRUTAS, MIL TRETAS

Em Conclave, um dos fortes candidatos ao Oscar desse ano, a eleição de um novo papa é o pano de fundo para um thriller sobre mentiras, segredos e poder

Foi em março de 2013 que uma reunião do Colégio de Cardeais transformou o argentino José Mario Bergoglio em Papa Francisco I. Esse encontro de cardeais, convocados ao Vaticano após a renúncia ou morte de um papa, é chamado de conclave e não parecia que veríamos um tão cedo até surgir Conclave, filme do suíço-alemão Edward Berger que ganhou Globo de Ouro de Melhor Roteiro e está indicado em oito categorias no Oscar, incluindo Melhor Filme, Ator, Atriz Coadjuvante e Trilha Sonora [ganhou de Melhor Roteiro Adaptado]. 

Mas se no mundo real, os conclaves são um mistério guardado a sete chaves desde sua criação em 1268, no livro de Robert Harris e em sua adaptação cinematográfica, o evento é terreno fértil para um thriller eclesiástico cheio de politicagens, segredos, mentiras e traições, afinal homens de fé também são seres humanos. E essa bateção de barretes começa, justamente, com a morte de um papa. 

De 15 a 20 dias após a vacância do posto papal, um conclave precisa começar para decidir o novo ocupante. No filme, a coordenação de um dos eventos mais importantes da Igreja Católica é dada ao cardeal Lawrence (Ralph Fiennes) que precisa seguir os ritos e manter o clima numa disputa silenciosamente violenta entre cinco cardeais: o americano progressista Bellini (Stanley Tucci), o italiano conservador Tedesco (Sergio Castellitto), o canadense moderado Tremblay (John Lithgow), o nigeriano conservador Adeyemi (Lucian Msamati) e, de última hora, o azarão mexicano Benítez (Carlos Diehz). Outra peça importante desse jogo é a Irmã Agnes (Isabella Rossellini) que ouve e sabe de tudo, e tem lá suas influências, mesmo sem ter nenhum poder de decisão. 

Durante alguns dias, poucos mais de 120 cardeais votam secretamente buscando um novo papa em comum e as votações se sucedem – às vezes mais de uma vez por dia – até esse nome ser o preferido por dois terços do Colégio de Cardeais. Quando uma eleição é inconclusa, as cédulas de votação são queimadas juntas de uma mistura de perclorato de potássio, antraceno e enxofre e o resultado é uma fumaça escura que sai pelo céu do Vaticano. Porém, quando os cardeais finalmente decidem pelo novo papa, as cédulas vão ao fogo junto a clorato de potássio, lactose e colofónia e a fumaça sai branca. É a fumaça que todo mundo católico aguarda ansiosamente. Detalhe: as cédulas são queimadas em uma estufa construída em 1939 na parte superior da Capela Sistina.  

O grande foco de Conclave está nesses poucos dias de “disputa eleitoral”, nesse processo tão fascinante quanto desconhecido. Pelas óbvias liberdades que toma (não custa lembrar que Conclave é uma obra de ficção), o filme foi duramente criticado por setores mais conservadores da Igreja Católica. Em uma resenha no site americano das Edições Paulinas, um crítico afirma que o longa “ofende ao pegar esse ritual sagrado que supostamente inspira fé, humildade e confiança na providência de Deus e o transforma em um comentário perturbador sobre a fraqueza e ambição humanas”. Já a organização americana Liga Católica pelos Direitos Religiosos e Civis afirmou que Conclave “é mais uma peça de propaganda anticatólica do que uma obra de arte”.  

Ninguém da produção deu muita trela para essas isoladas críticas extremistas. Isabella Rossellini, uma das mais fortes candidatas ao Oscar de Atriz Coadjuvante, estudou em colégio de freiras e falou com tranquilidade para a jornalista Cecília Malan, no Fantástico, que “eu não via diferença entre minha mãe [a lendária atriz Ingrid Bergman], que era uma mulher muito livre, e as freiras, no sentido de que ambas escolheram a vida que queriam viver”. Muito elegantemente, Ralph Fiennes disse ao site RadioTimes.com que “há esse discurso muito interessante que Robert Harris dá ao meu personagem, sobre dúvida, a importância da dúvida, que choca muitos cardeais. Sem dúvida, não há mistério. Sem mistério, não há fé”.  

Muito mais pragmático, o diretor Edward Berger afirmou ao site Hammer to Nail que soube do projeto de adaptar o livro Conclave em conversa com a produtora Tessa Ross e que o roteirista seria Peter Straughan, de O Espião Que Sabia Demais, Frank e O Pintassilgo. “Disse pra ela: ‘Peter Straughan é o melhor escritor do mundo.’ Porque o que ele faz é criar um tipo maravilhoso de enredo, como uma história que dá vontade de virar a página com muitas reviravoltas. Mas também sempre há algo mais profundo por baixo, um motivo do porquê estamos fazendo o filme; uma alma para o filme, como um arco interno. Neste caso, é o arco interno de dúvida do personagem de Ralph Fiennes. Você conhece aquele sentimento de ser oprimido pela dúvida e se sentir liberto por ela. Isso me fez querer fazer o filme, seu discurso sobre a dúvida”. 

Depois, pensado melhor, começou a ver algo em comum entre Conclave e seu filme anterior, Nada de Novo no Front (que lhe lançou ao mundo ao levar 4 Oscar). “Os dois são sobre guerra. Uma é uma guerra física, a Primeira Guerra Mundial; a outra é uma guerra intelectual de mentes, um verdadeiro jogo de xadrez”, afirmou ao Hammer to Nail. Seguindo no mesmo raciocínio, Berger acredita “também que os protagonistas passam por um processo de libertação. Felix, o soldado, começa indo pra guerra com esse entusiasmo, e então passa a ter um sentimento de que foi traído. E lentamente, no final, ele se liberta. Ele encontra sua paz na morte. E igualmente Lawrence encontra sua paz quando abre a janela e deixa o ar voltar para sua vida; ar e luz”. 

Um dos fortes candidatos ao Oscar de 2025, Conclave também ganhou elogios de diretores como Oliver Stone (JFK, Platoon, etc), Paul Schrader (A Marca da Pantera, Fé Corrompida, etc) e Colarie Fargeat (A Substância, outro forte candidato do ano), mas o mais entusiasmado foi Alexander Payne, de Sideways, Nebraska e Os Rejeitados. 

Em artigo para o site da Variety, Payne diz que o diretor Edward Berger usou em Conclave “a mesma imaginação e meticulosidade que ele colocou no grande filme de guerra [Nada de Novo no Front] e foca como um cirurgião em uma história contida sobre as intrigas e esquemas nos bastidores de quando um papa morre. Você simplesmente não consegue acreditar o quão fascinante o filme é - engraçado e cheio de suspense e tão bem escalado e bem atuado. Berger tem a qualidade milagrosa de fazer algo que você nunca esquece que é um filme, mas ao mesmo tempo, é como se você estivesse realmente lá. São filmes muito diferentes, mas compartilham um tema consistente. Ambos são sobre desmascarar instituições poderosas e revelar os egos massivos que dão as cartas para as massas - egos alternadamente nobres e ignóbeis, principalmente o último”.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

oh no, not me

na edição de fevereiro da Revista Monet contribui com dois textos (coisa rara). um foi sobre Babygirl, o filme mais recente da Nicole Kidman, e outro sobre David Bowie, por causa da estreia no canal Curta! de um bom documentário sobre sua música, vida e carreira. consegui nesse do Bowie algo que já tinha feito no do Hermeto Pascoal: entrevistas próprias. e aí a matéria sempre fica com um gosto melhor, mais pessoal. segue então a dita... 

O HOMEM QUE CAIU NA TERRA

David Robert Jones nasceu em 8 de janeiro de 1947 e tornou-se David Bowie em 16 de setembro de 1965 para não ser confundido com Davy Jones (The Monkees). Quando Bowie morreu em 10 de janeiro de 2016, aos 69 anos, ninguém confundiria um dos maiores artistas da cultura mundial com ninguém. Todo esse arco de vida, música e arte é contado com minúcias, entrevistas e muitas imagens de arquivo no documentário Bowie: O Homem Que Mudou o Mundo, uma das principais estreias do mês no Curta! 

“O Bowie mudou o jogo. Ele é Artista com A maiúsculo, um artista completo, que experimentou, viveu, nunca se acomodou e se expressou muito além da música”, explica Liv Brandão, jornalista e editora com passagens pelo jornal O Globo, UOL e Billboard Brasil. “Lembro que não comecei pelos clássicos do Bowie. O primeiro disco que ouvi dele, ainda na adolescência, foi o Earthling [1997], que meu irmão, 9 anos mais velho, tinha em CD. Achei a capa com aquele casacão do Alexander McQueen maneira e coloquei pra tocar. Não liguei muito, confesso. Aos 14 anos ainda não tinha a bagagem necessária pra isso”. 

“Meu amor por ele foi nascer já maior de idade, em festas indies que tocavam ‘Modern Love’ [1983] e ‘Sound and Vision’ [1977], que acabou virando minha preferida dele. Depois disso mergulhei pra saber mais sobre aquele homem fascinante e sua obra maravilhosa”, e Liv Brandão diz tudo quando usa o termo ‘mergulhar’. A obra musical de David Bowie é um recife de corais, diverso e em constante movimento. 

O começo, na adolescência, tocando sax em muitas bandas com repertórios variados. O primeiro disco, artístico e barroco, que saiu em 1967 e pouca gente ouviu. O primeiro sucesso, “Space Oddity”, em 1969, com sua psicodelia contemplativa e inspiração confessa em 2001: Uma Odisséia no Espaço. O hard rock guitarrístico de The Man Who Sold the World em 1970. A levada pop mais quente e pianística de Hunky Dory, lançado no final de 1971, com mais dois hits (“Changes” e “Life on Mars?”). O primeiro personagem, um alienígena andrógino que vira um glam rock star, que virou o mundo de cabeça para baixo em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de 1972. 

Bowie seguiu pela década de 1970 firme e inquieto, mas também com problemas no primeiro casamento, com o empresário e muita cocaína. E mesmo assim criou um novo personagem (Thin White Duke) e lançou discos clássicos como Aladdin Sane (1973), Diamond Dogs (1974) e Young Americans (1975), além da trilogia de Berlim composta por Low (1977), “Heroes” (1977) e Lodger (1979). 

“Considero oficialmente que o primeiro disco do David Bowie que escutei foi o Aladdin Sane. Tenho uma vaga lembrança de ouvir antes umas duas músicas dele na Rádio Continental de Porto Alegre em 1973, eu tinha 12 anos, mas só lembro do locutor dizendo o nome. O Aladdin Sane eu escutei mesmo e fiquei fascinado”, relembra Emílio Pacheco, jornalista gaúcho e um dos poucos privilegiados que estiveram presente nas duas únicas passagens de David Bowie pelo Brasil (1990 e 1997). 

Pacheco ouviu todas as mudanças de Bowie nos anos 1970 e também viu sua definitiva ascensão ao estrelato nos anos 1980 a partir do disco Let’s Dance (1983) e de seus cada vez mais frequentes trabalhos como ator (para ficar nos mais conhecidos, Fome de Viver, Furyo – Em Nome da Honra, Absolute Beginners e, acima de tudo, Labirinto). Mas nem tudo foi recebido com a mesma empolgação por fãs como Pacheco. 

“Quando me tornei fã do Bowie esperava que ele nunca mudasse de estilo, que ele continuasse sempre fazendo aquele tipo de rock da fase Ziggy Stardust. E o Bowie mudava radicalmente. E no primeiro momento não vi isso com bons olhos. Hoje, em retrospectiva, acho que uma das importâncias do Bowie foi ter se tornado um artista que nunca se prendeu a nenhum estilo e se recusou a se tornar nostalgia”, diz Pacheco que também confessa que a princípio não gostou de discos como Young Americans e Station to Station, e que atualmente estão entre os preferidos, mas que até hoje não entende Heroes

“Fui me acostumando com a ideia que o Bowie era um cara mutante, um camaleão como chamam, né? E fui acompanhando as mudanças dele, com interesse, gostando mais de uns discos que de outros, já sabendo que podia esperar qualquer coisa, porque a marca registrada dele era a imprevisibilidade. Bowie estava sempre surpreendendo”, e assim Pacheco fez as pazes com seu ídolo. Quando anunciaram Bowie no Brasil, em 1990, Pacheco estava preparado. Ou achava que estava. 

“Em 1990 vi um dos shows que ele fez no Brasil, que foi o do saudoso Olympia, em São Paulo, ingressos custando uma fortuna, mas realizei meu sonho de ver o Bowie. Fiquei uma parte do show pensando sem parar que ‘tava mesmo vendo o Bowie em terceira dimensão, com profundidade, que era ele mesmo que estava na minha frente. Que não era um filme. Isso me chamou atenção, coisa de fã”, mas se recompôs e pode curtir um show intimista para fãs que conheciam as músicas dos anos 1970 que cobriam boa parte do setlist. “Ouvi falar que o show da Praça da Apoteose no Rio de Janeiro e os do Parque Antártica, em São Paulo, o público só se animou com as músicas dos anos 80, ‘Let's Dance’, ‘Modern Love’, ‘China Girl’ e ‘Blue Jean’”. 

Sete anos depois, Bowie lançou Earthling, seu experimento com música eletrônica e vigésimo primeiro álbum. Foi na turnê desse disco que o inglês voltou ao Brasil com shows em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. E lá estava, novamente, Emílio Pacheco: “Assisti os três, foram sensacionais. O repertório era mais do momento, mas com algumas músicas mais antigas. Tinha uma pegada mais pesada, mais drum'n'bass, que era o lance dele na época. E o público geral estava mais bem informado e curtiu mais as músicas como um todo, não só aqueles sucessos mais manjados”. Pacheco já escreveu sobre esses shows diversas vezes em seu blog, mas não cansa de relembrar. Bowie segue mudando sua vida (e de outras e outros), música a música.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

e o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem

Hermeto Pascoal, o homem, a lenda, o bruxo. ele foi o assunto do meu mais recente frila pra Revista Monet. dessa vez conversei com três músicos amigos pra saber mais sobre um dos artistas mais originais da música brasileira. com vcs, Hermeto por Dudu Tsuda, Thiago França e Meno Del Picchia.

Hermeto por Bob Wolfenson

O BRUXO DOS MIL SONS 

Do alto de seus 88 anos, o músico Hermeto Pascoal mostra toda sua energia e originalidade em documentário inédito no canal Curta!

Hermeto Pascoal é um mistério em muitos sentidos. Não se sabe de onde vem tanta energia e muito menos tanta originalidade e inquietação musical. Não se sabe nem em qual localidade de Alagoas nasceu há 88 anos: algumas fontes dizem Canoa da Lagoa (é, inclusive, o nome de um seus mais famosos discos, Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, de 1984) e outras afirmam que é Olho d´Água Grande (35 km separam uma da outra). Os cineastas Lírio Ferreira e Carolina Sá optaram pela segunda e assim nasceu O Menino d'Olho d'Água, premiado e inédito documentário sobre o músico que estreia este mês no canal Curta! 

O longa traça um perfil de Hermeto a partir de três frentes: uma performance recente; suas lembranças de infância no sertão de Alagoas; e uma conversa sobre música e processo criativo. E a vida e obra do alagoano é um mar sem fim de histórias. Tem o encontro aos 7 anos com o acordeão do pai e os muitos forrós e festas de casamento que tocou ao lado do irmão José Neto. Tem os sons da natureza, os bichos, os instrumentos feitos com plantas e objetos. Tem a mudança para Recife aos 14 anos, o encontro com o igualmente albino e acordeonista Sivuca e as muitas rádios que tocou. Logo após completar 18 anos casou-se com Ilza, a origem de um casamento de 46 anos e 6 filhos, e descobriu o piano. 

Sempre a procura de trabalho, Hermeto foi com a família para João Pessoa atrás da Orquestra Tabajara e depois, em 1958, para o Rio de Janeiro para tocar na Rádio Mauá e também em boates e hotéis refinados. Então, no início da década de 1960, Hermeto se mudou para São Paulo e a flauta foi tomando o lugar do acordeão e do piano. Aos 25 anos, músico e pai de família, seguia tocando de tudo, mas começou a compor mais e sempre injetando Nordeste no samba jazz que fazia sucesso na época. Esteve no Som Quatro, no Sambrasa Trio e nos especialmente cultuados Quarteto Novo (o grupo que acompanhou Edu Lobo em “Ponteio”, a grande vencedora do Terceiro Festival de Música Popular Brasileira, produzido pela TV Record em 1967) e Brazilian Octopus. 

Então o percussionista Airto Moreira, seu companheiro no Quarteto Novo, o chamou para gravar nos Estados Unidos no final da década de 1960 e por lá Hermeto ficou cerca de quatro anos. Nesse período gravou dois discos com Airto e sua esposa, a cantora Flora Purim, atuando como compositor, arranjador e instrumentista. Também conheceu Miles Davis e chegou a trocar sopapos com o trompetista numa brincadeira de boxe (diz a lenda que Hermeto acertou um cruzado no rosto de Miles). O brasileiro albino e estrábico impressionou tanto o norte-americano que gravou duas de suas composições, “Nem um talvez” e “Igrejinha”, em seu disco Live-Evil (1971) com direito a participação de Hermeto tocando vários instrumentos. De volta ao Brasil em 1973, gravou seu primeiro disco solo (A Música Livre de Hermeto Pascoal) e deu início a uma das jornadas mais originais da música instrumental brasileira. 

TUDO É COISA MUSICAL

“Me lembro de escutar Hermeto pela primeira vez quando eu tinha uns 16 anos, em meados dos anos 1990. Um amigo baixista que tocava comigo na época me apresentou a música ‘Bebê’. Logo depois ouvi outras músicas dele e, claro, o seu famoso solo de chaleira que mudaria minha vida pra sempre. Parei e pensei: opa, que troço é esse? Mal sabia que alguns anos mais tarde, em 2002, seguiria nesse caminho que ele abriu e começaria minhas pesquisas em música experimental”, afirmou Dudu Tsuda, músico paulistano que participou de bandas como Cérebro Eletrônico, Jumbo Elektro e Trash Pour 4 e mais recentemente tem se dedicado a trilhas de espetáculos de dança e performances. 

O músico, professor e antropólogo Meno Del Picchia ouviu Hermeto pela primeira vez mais ou menos com a mesma idade que Tsuda. “Devia ter uns 13 ou 14 anos. Foi um disco chamado Hermeto Pascoal & Grupo, que é de 1982. Eu já estava tocando porque comecei a estudar piano ainda pequeno e depois, com 12, fui tocar instrumentos de corda, baixo e violão. E quando ouvi esse disco do Hermeto, eu pirei, achei maravilhoso, e comecei a tentar tirar umas músicas porque mexeu muito comigo. E uma das coisas que mais me impressionou, especificamente nesse primeiro álbum que ouvi, foi a capacidade do Hermeto de transportar a gente pra aquela sonoridade das bandas de coreto e seus instrumentos de sopro e percussão. Mas, ao mesmo tempo que o Hermeto me jogava em pracinhas do interior de Alagoas, ele também compunha músicas que remetiam para um jazz contemporâneo completamente experimental, e sempre com uma brasilidade muito forte”. 

Já Thiago França, criador da Espetacular Charanga do França e integrante do Metá Metá, nunca tinha ouvido nenhum disco de Hermeto até se deparar com o “bruxo” ao vivo no Sesc Campinas no final da década de 1990. “Foi uma loucura o show, porque o Hermeto tocou mais de 3 horas, e o povo do Sesc desesperado pedindo pra ele parar e ele não parava. Até uma hora que tiraram da tomada o teclado que ele estava tocando e ele catou um instrumento de percussão. O povo do Sesc subindo em cima do palco pedindo pra ele parar, pelo amor de Deus, e ele não parava. Então, essa é uma coisa que me identifico e pratico numa seara diferente, que é essa paixão, essa necessidade de tocar, essa coisa de começar a tocar e não querer parar nunca mais. É uma coisa que nunca vi em nenhuma outra pessoa, essa coisa da dedicação absoluta à música”. 

Esses três músicos, com suas sólidas carreiras próprias, não foram influenciados diretamente pela música de Hermeto, mas sim pelo jeito de fazer música de Hermeto e isso é coisa que não se esquece. “Ele é um farol para muitos jovens, pois vê-lo tocando, mesmo sabendo que são peças dificílimas, parece fácil e divertido. Ele aproxima as pessoas da música, as convida a querer também experimentar, a querer também inventar seu próprio modo de tocar. Seu ímpeto em experimentar novas linguagens e sons, por exemplo, formou meu espírito curioso e em constante interesse pela associação ainda não realizada, pelo novo formado a partir do encontro de diferentes. Ao mesmo tempo em que sua jovialidade me traz muita esperança no nosso fazer, não na esperança de ficar rico ou essas coisas banais, mas de que tudo vale à pena, mesmo que, por vezes, tenhamos a sensação que é o caminho mais difícil”, explicou Tsuda. 

Do seu jeitinho, Hermeto foi se espalhando e ganhando o mundo, principalmente Europa e Japão, lugares que nunca deixou de tocar desde os anos 1970. Montou também bandas que revelaram instrumentistas do naipe de Jovino Santos Neto, Carlos Malta, Itiberê Zwarg, Márcio Bahia, Nivaldo Ornelas, Nenê e Vinicius Dorin, que tocaram ao seu lado por anos a fio (uns ainda tocam). “Ele é um dos poucos artistas que consegue manter a mesma banda ao longo dos anos e isso faz toda diferença numa performance ao vivo, porque eles se conhecem muito, um já sabe o que o outro vai fazer e, sendo assim, o som tem uma força ainda maior”, disse Del Picchia. 

Thiago França concorda em gênero, número e degrau. “Ele é um cara que sabe valorizar as pessoas com quem ele toca, e tem essa magia de fazer todo mundo florescer junto. Mas o melhor de tudo é que na música de Hermeto tem frevo, choro, baião, samba, e tem coisas que a gente não consegue identificar direito o que são. Tem coisas super melódicas, outras super complexas, tem coisa muito suingada e tem tempos compostos dificílimos de tocar. Acho que ele foi em todos os lugares, e mapeou todas as possibilidades da música instrumental, e isso dele ter reunido dentro de um trabalho é o que o torna tão relevante. Ele é o cara que nos diz, e não só diz, mas mostra, que todos os caminhos são possíveis na música instrumental”.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

95 músicas e 65 discos gringos de 2024

aqui no esforçado os sons gringos vem de todos os lugares. tem EUA, claro e sempre e muito. mas tem também França, Chile, Argentina, Portugal, Alemanha, Nigéria, tuaregs, Inglaterra, Colômbia, Togo, Geórgia, Egito, Irã, Paquistão, África do Sul, Turquia, Palestina, Dinamarca, Cuba, República Dominicana, Canadá, México, Camarões, Porto Rico, Haiti, Hungria, Montenegro e assim por diante.

importante destacar também que dessas 95 músicas, 4 tem participações fundamentais de brasileiros: o produtor português Branko (ex-Buraka Som Sistema) chamou o Baiana System; a argentina Nathy Peluso trouxe os vocais de Lua de Santana para uma espécie de funk cisplatino; o quarteto canadense BadBadNotGood mergulhou na sonoridade brasileira setentista com vocais de Tim Bernardes e arranjos do mestre Arthur Verocai; enquanto a iraniana Sevdaliza dividiu vocais de um dos hits do ano com a francesa Yseult e a brasileiríssima Pabllo Vittar. é muito som, minha gente.



Al Green – “Everybody Hurts”
Aloe Blacc – “Seven Nation Army”
Amaka – “Oudad” [feat. Ali Ben Naji]
Ana Tijoux & Pablo Chill-E – “Dime Que”
anaiis & Grupo Cosmo – “B.P.E”
Andrew Bird & Madison Cunningham – “Crystal”
Angélica Garcia – “Juanita”
Anthony Joseph – “Black History”
Bacao Rhythm & Steel Band – “Love For The Sake Of Dub”
Bad Bunny – “Una Velita”
BadBadNotGood – “Poeira Cósmica” [feat. Tim Bernardes & Arthur Verocai]
Beth Gibbons – “Reaching Out”
Beyoncé & Dolly Parton – “Tyrant”
Bloody Civilian – “Head Start”
Blundetto & Juliette Magnevasoa – “La Playa”
Blundetto & Liam Bailey – “Heavy Soul”
Bonobo – “Expander”
Branko – “Aroeira” [feat. Baiana System]
Capicua – “Que força é essa amiga”
Celia Wa – “Ola”
Chance the Rapper – “Together”
Childish Gambino – “Little Foot Big Foot” [feat. Young Nudy]
Clairo – “Sexy to Someone”
Cruzloma – “Ofrenda”
DJ Vadim – “Like the Wind pt 2” [feat. Deuce Eclipse & Abstract Rude]
Doechii – “Denial is a River”
Dogo du Togo & The Alagaa Beat Band – “Avoudé”
Erika de Casier – “ice” [feat. They Hate Change]
Ezra Collective – “No One's Watching Me” [feat. Olivia Dean]
Foudeqush – “MMM” [feat. Girl Ultra]
Free Nationals, A$AP Rocky & Anderson .Paak – “Gangsta”
Greentea Peng – “Tardis”
Hope Tala – “Bad Love God”
Ibibio Sound Machine – “Mama Say”
IDK – “Kickin”
Indus – “Corre Cimarron”
Janko Nilovic x Arpad Lavotta – “Conte”
Justin Timberlake – “Selfish”
Kamasi Washington – “Prologue”
Kamauu – “Holy Spirit”
Kamo Mphela, EeQue & TOSS – “Khumule” [feat. Thebuu & Eltee]
Kaytranada – “Feel a Way” [feat. Don Toliver]
Kendrick Lamar – “Not Like Us”
Kham Meslien – “Ta confiance” [Souleance Remix]
Khruangbin – “Hold Me Up (Thank You)”
Kid Cudi & Young Thug – “Rager Boyz”
Kim Deal – “Nobody Loves You More”
Kim Gordon – “Bye Bye”
Kimberose – “Out of Love”
KUKII (fka Lafawndah) – “Rare Baby”
La Yegros – “Bailarin”
Lady Leshurr – “Bite My Style”
Laurent Bardainne & Tigre d'Eau Douce – “Meilleur” [feat. Jeanne Added]
LCD Soundsystem – “x-ray eyes”
Leon Bridges – “Peaceful Place”
Leyla McCalla – “Scaled to Survive”
Liam Bailey – “Dumb”
Lido Pimienta – “He Venido al Mar”
Lismar – “No Drama”
Little Simz – “S.O.S.”
Los Yesterdays – “Love is a Game For Fools”
Marrón – “Suéltalo”
Meridian Brothers – “En el Caribe estoy triste”
Michael Kiwanuka – “Floating Parade”
Moonchild Sanelly – “Do My Dance”
Nathy Paluso – “Menina” [feat. Lua de Santana]
Nilüfer Yanya – “midnight sun”
Norah Jones – “Running”
OG Keemo & Levin Liam – “Bee Gees”
Olympia Vitalis – “The Rush”
Orquesta Akokán – “Con Altura”
Pupajim & Blundetto – “Tancarville”
Rapsody – “Look What You’ve Done”
RDGLDGRN – “Heads Are Gonna Roll” [feat. Madalen Duke]
Residente & Busta Rhymes – “Cerebro”
Sade – “Young Lion”
Sampha & Little Simz – “Satellite Business 2.0”
Sevdaliza – “Alibi” [feat. Pabllo Vittar & Yseult]
Sinkane – “Imposter”
SiR – “No Evil”
Skiifall – “Problems”
St. Vincent – “Broken Man”
Tamada – “Jinit”
The Smile – “Zero Sum”
Theis Thaws & Run Red Rambo – “Good, and I'm Not” [Farma G Remix]
Theodor – “Tropical Bird”
Tierra Whack – “X”
Tinariwen – “Amoss Idjraw”
Toro y Moi – “Tuesday”
Tunde Adebimpe – “Magnetic”
Vampire Weekend – “Mary Boone”
Vince Staples – “Nothing Matters”
Yamê – “Bécane”
Young Paris – “Reparations”
zeyne – “Ma Bansak”


e agora os discos gringos. foram, na verdade, 65 discos de 61 artistas, pois Donald Glover emplacou dois (Atavista e Bando Stone & The New World), BadBadNotGood veio com três EPs (Mid Spiral: Chaos, Mid Spiral: Order e Mid Spiral: Growth) e The Smile com um disco e outro de "sobras" do primeiro (Wall of Eyes e Cutouts). não deu pra separar esses aí...

ouvi bastante esses discos acima, mas gostaria de destacar outros que ouvi ainda mais. começando pelos instrumentais poderosos dos alemães Bacao Rhythm & Steel Band, dos Hermanos Gutierrez, do trio Janko Nilovic, JJ Whitefield & Igor Zhukovsky, do grandão Kamasi Washington, dos franceses Laurent Bardainne & Tigre d'Eau Douce, do mestre Mulatu Astatke, e dos ingleses Nubya Garcia e Shabaka Hutchings. 

tem também os trabalhos de umas minas da pesada transitando entre rock e pop, country e latinidades. o que dizer do lindo trampo solo de Beth Gibbons (Portishead)? e o mergulho country de Beyonce? e a colombiana Kali Uchis produzindo hits sem parar? e a revelação do rap americano, a sensacional Doechii? e as roqueiras fantásticas Kim Deal, Kim Gordon e St. Vincent? só mina foda.

por último entre os destaques tem o excelente disco que o Kendrick Lamar lançou de surpresa agora no fim do ano, o novo do jovem Michael Kiwanuka (que acerta sempre) e a volta adubada de um dos preferidos da casa, o produtor francês Blundetto (dessa vez em parceria com o MC Pupajim).

Arooj Aftab - Night Reign
Bacao Rhythm & Steel Band - BRSB
BadBadNotGood - Mid Spiral: Chaos/Order/Growth
Beth Gibbons - Lives Outgrown
Beyoncé - Cowboy Carter
Childish Gambino - Atavista / Bando Stone & The New World
Common & Pete Rock - The Auditorium Vol. 1
Cruzloma - Mitos & Ritos
DJ Vadim - The Soundcatcher 2.0
Doechii - Alligator Bites Never Heal
Ezra Collective - Dance, No One's Watching
Ghostpoet - Am I The Change I Wish To See?
Hermanos Gutierrez - Sonido Cósmico
Ibibio Sound Machine - Pull the Rope
IDK - Bravado + Intimo
Indus - Negra
Jack White - No Name
Janko Nilovic, JJ Whitefield & Igor Zhukovsky - Cosmo Giants
Justin Timberlake - Everything I Thought It Was
Kali Uchis - Orquideas
Kamasi Washington - Fearless Movement
Kaytranada - Timeless
Kendrick Lamar - GNX
Khruangbin - A La Sala
Kid Cudi - Insano
Kim Deal - Nobody Loves You More
Kim Gordon - The Collective
La Yegros - Haz
Laurent Bardainne & Tigre d'Eau Douce - Eden Beach Club
Leyla McCalla - Sun Without Heat
Liam Bailey - Zero Grace
Lin-Manuel Miranda & Eisa Davis - Warriors
Little Simz - Drop 7
Lupe Fiasco - Samurai
Mdou Moctar - Funeral for Justice
Michael Kiwanuka - Small Changes
Mulatu Astatke & Hoodna Orchestra - Tension
Nathy Peluso - Grasa
Nick Cave and The Bad Seeds - Wild God
Nilüfer Yanya - My Method Actor
Norah Jones - Visions
Nubya Garcia - Odyssey
Pupajim & Blundetto - Tancarville
Rapsody - Please Don't Cry Out Now
Residente - Las Letras Ya No Importan
Schoolboy Q - Blue Lips
Shabaka - Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace
Shaboozey - Where I’ve Been, Isn’t Where I’m Going
Sinkane - We Belong
SiR - Heavy
St. Vincent - All Born Screaming
The Cure - Songs of a Lost World
The Smile - Wall of Eyes/Cutouts
Tierra Whack - World Wide Whack
Tinariwen - Idrache (Traces Of The Past)
Toro y Moi - Hole Erth
Trueno - El Último Baile
Tyler the Creator - Chromakopia
Vampire Weekend - Only God Was Above Us
Vince Staples - Dark Times
Young Paris - African Hustler

domingo, 15 de dezembro de 2024

56 músicas e 50 discos brasileiros de 2024

neste 2024 que está acabando o esforçado completa 15 anos ininterruptos de retrospectivas musicais (desde a criação do blog, em 2009). acho que no começo tentei manter um número fixo de músicas e discos e depois, com o tempo, fui vendo que muita coisa ia ficando de fora e que era muito mais interessante ter um panorama maior e mais diverso do que ouvi no ano. a partir daí, o número de músicas e discos mudou de ano em ano. muito mais legal.

em alguns anos cheguei a fazer a playlist de músicas também no spotify, mas a preguiça que tenho com a plataforma é tão grande que o bom e velho youtube me basta (tanto para a playlist quanto para os links dos discos na íntegra).

como sempre tem gente nova, novos e velhos veteranos, instrumentais e pop, remixes e tradição, de um tudo. escuta só...


Agnes Nunes – “As ruas não te amaram como eu”
Alessandra Leão & Sapopemba – “Exu Ajuô”
Alice Caymmi – “O amor (El Amor)”
Alvaro Lancellotti – “Maneira de ver”
Arrigo Barnabé & Trisca – “Fico Louco”
ÀTTØØXXÁ & Baco Exu do Blues – “Tranca rua”
Áurea Semiseria – “Big Mama”
Bruna Alimonda – “Estado febril”
Céu – “Raiou” [part. Ladybug Mecca]
Chico Bernardes – “Motivo”
Conjunto Boi de Piranha – “Dançando no escuro” [Ramiro Galas Remix]
Criolo, Dino D'Santiago & Amaro Freitas – “Esperança”
Curumin – “Paixão faixa preta”
Davi Nadier – “MaPeople”
Deize Tigrona – “Prazer sou eu” [feat. Larinhx]
Dom Salvador, Adrian Younge & Ali Shaheed Muhammad – “Os ancestrais”
Don L - Bem alto
Duda Beat – “Desapaixonar”
Duda Brack – “Cumbia Mel” [part. Gaby Amarantos]
FBC, Djonga & Pepito – “Rap bom”
Felipe Cordeiro – “Revolú” [part. Ariel Moura e Victor Xamã]
Giovani Cidreira – “O ouro e a madeira”
Grelo da Seresta – “Vida loka”
Iara Reluxx & Juçara Marçal – “Iroko (Axé que vem do Pé)”
João Gomes & Pabllo Vittar – “Vira lata”
Jup do Bairro, Maria Alcina & Pagode da 27 – “Amor de carnaval”
Karina Buhr – “Poeira da luz”
Liniker – “Ritmada Caju” [Mulú remix]
Lucy Alves & Rachel Reis – “Melaço”
Lurdez da Luz – “Ben Bella”
Maria Beraldo – “Minha missão”
Marina Sena – “Numa ilha”
Marujos Pataxó & Tropkillaz – “A força dos encantados” [Tropkillaz Remix]
MC Reino – “Bom dia princesa/Dono do Porsche”
Melvin Santhana – “Zara” [part. Luedji Luna & Zudizilla]
Meno Del Picchia – “Fogo bom”
Mombojó – “Romance da Bela Inês”
MOMO – “P​á​ra” [part. Jessica Lauren]
Moreno Veloso – “A donzela se casou” [part. Maria Bethânia, Caetano, Tom e Zeca Veloso]
Mulú & Carmen Miranda – “Pra Você Gostar de Mim” [Remix]
Nego Gallo – “Catedrais”
Pabllo Vittar & Duda Beat – “Ai que calor”
Péricles – “Bem que se quis” [Reggae Remix prod. Rincon Sapiência]
Rei Lacoste & Juçara Marçal – “Sem contrato”
Rincon Sapiência – “Jogo de cintura”
Rocha Ishi – “Respira”
Rodrigo Campos & Thiago França – “Gamei”
Russo Passapusso – “Dora” [part. Karina Buhr]
Saulo Duarte – “Canção do Povo”
Thiago França – “Dor elegante” [part. Juçara Marçal]
Verônica Ferriani & Áurea Martins – “Cochicho no silêncio vira barulho, irmã”
Vitor Ramil – “Teu vulto”
Yago Oproprio – “Catedrais”
Zé Manoel – “Malaika” [part. Luedji Luna]
Zeca Baleiro & Wado – “Alma turva”
Zécarlos Ribeiro, Ná Ozzetti & Tulipa Ruiz – “Bem humorado”
  

e agora vamos aos discos... como sempre tem gente que emplacou disco e música, gente que só emplacou música, gente que só emplacou disco e assim que a banda toca por aqui. mas gosto sempre de fazer alguns destaques nessa lista porque dentre esses 50 tem alguns que ouvi muito mais que outros. são aqueles discos que pegaram mais, tais como os poderosamente instrumentais Y'Y do pianista pernambucano Amaro Freitas e Canhoto de pé do saxofonista mineiro/paulistano Thiago França. tem o samba baiano de Ederaldo Gentil na voz do jovem Giovani Cidreira em Carnaval eu chego lá. tem o samba carioca de Zé Keti entortado por Jards Macalé e o Sergio Krakowski Trio em Mascarada. tem toda a beleza do cancioneiro de Milton Nascimento no encontro com a cantora, baixista e fã norte-americana Esperanza Spalding em Milton + esperanza. tem excelentes novos trabalhos de jovens ídolos da casa como Novela da Céu, Pedra de selva do Curumin e Digital Belém de Saulo Duarte. tem o estreante paulistano Yago Oproprio, uma espécie de herdeiro de Criolo (tanto nas rimas quanto no canto), em Oproprio. e, por último, o lindo lindíssimo Coral do cantor, compositor e pianista pernambucano Zé Manoel. mas lista completa tá aqui...
 
Álvaro Lancellotti - Arruda, alfazema e guiné
Amaro Freitas - Y’Y
ÀTTØØXXÁ - Summer Groove
Boogarins - Bacuri
Bruna Alimonda - Estado febril
Céu - Novela
Chico Bernardes - Outros fios
Clube do Balanço - Cadê Tereza
Curumin - Pedra de selva
Davi Nadier - Profundhi
Deize Tigrona - Não tem rolê tranquilo
Duda Beat - Tara e tal
Erasmo Carlos - Erasmo Esteves
FBC - Feito à mão
Felipe Cordeiro - Close, drama, revolução & putaria
Filarmônica de Pasárgada - Música infantil para crianças malcriadas
Giovani Cidreira - Carnaval eu chego lá
Hermeto Pascoal - Pra você, Ilza
Josyara - Mandinga multiplicação
Juçara Marçal - DEB RMX
Jup do Bairro - In.corpo.ração
Kamau - Documentário
Liniker - Caju
Maria Beraldo - Colinho
Mascarada: Zé Keti por Sergio Krakowski Trio & Jards Macalé
Matéria Prima - novidadedasantiga
Meno Del Picchia - Maré cheia
Milton + esperanza       
Mombojó - Carne de caju
Momo - Gira
Moreno Veloso - Mundo paralelo
Ná Ozzetti & Luiz Tatit - De lua
Nabru - Desenredo
Nego Gallo - Yopo
Negro Leo - Rela
Orquestra Frevo do Mundo, Pupillo & Davi Moraes - Moraes é frevo
Rashid - Portal
Rodrigo Campos - Pode ser outra beleza
Saulo Duarte - Digital Belém
Silva - Encantado
Slipmani - Até aqui, Slip nos ajudou
SPVIC & Síntese - Olímpico: Fora do Tempo
Tássia Reis - Topo da minha cabeça
Thiago França - Canhoto de pé
Verônica Ferriani - Cochicho no silêncio vira barulho, irmã
Vitor Ramil - Mantra concreto
Yago Oproprio - Opropio
Zé Manoel - Coral
Zeca Baleiro & Wado - Coração sangrento
Zudizilla - Le FauVe 

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

eterna fernandona

mais um frila pra revista Monet e dessa vez o assunto é o aniversário de 95 anos de uma das maiores atrizes da história da humanidade, a muito nossa Fernanda Montenegro. dessa vez não quis fazer apenas uma biografia recheada e entrevistei duas figuras do teatro para falar de Fernandona: o diretor, ator e dramatugro Ivam Cabral (d'Os Satyros, e que fiz perfil em 2018) e a atriz, diretora e dramaturga Érica Montanheiro. segue o texto com fotos de Bob Wolfenson.

Fernanda por Bob Wolfenson, 2024

A DONA DA PALAVRA

Fernanda Montenegro comemora 95 anos de vida e 80 de uma carreira toda dedicada ao texto

“Meu sonho era nunca estrear. Era ficar ensaiando, ensaiando, e aí a coisa ia acontecendo”, confessou certa vez Fernanda Montenegro à sua filha Fernanda Torres. Do alto de seus 95 anos, a grande dama do teatro, do cinema e da TV brasileira, também está comemorando 80 anos de ensaios e estreias. Impossível saber o que mais surpreenderia à pequena Arlette Pinheiro Esteves da Silva, nascida em 16 de outubro de 1929 em Madureira, no Rio de Janeiro: uma vida tão longa, uma carreira tão rica e premiada ou ser reconhecida como Fernanda Montenegro.

O pseudônimo que virou nome foi criação dela própria quando, logo após começar a trabalhar aos 15 anos como locutora e depois atriz na Rádio Ministério da Educação e Saúde (atual Rádio MEC), viu que Arlette Pinheiro não iria muito longe. Pensou em algo grandioso, um nome que poderia ser de uma escritora (ironicamente, muitos e muitos anos depois ela se tornaria um membro imortal da Academia Brasileira de Letras). Da cabeça de Arlette nasceu Fernanda Montenegro, que do rádio passou a atuar regular e apaixonadamente no teatro, onde conheceu seu marido (o ator e diretor Fernando Torres), e na televisão desde seu início no país em 1950. O cinema só viria mais tarde. 

“Minha mãe é um caso sério. E ela é viciada mesmo em teatro. ‘Os teatros estão cheios, minha filha. Cheios!’”, disse Fernanda Torres nos bastidores da apresentação única e gratuita que a mãe fez em agosto deste ano no anfiteatro do Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Numa noite quente de domingo, Fernanda Montenegro apresentou A Cerimônia do Adeus - monólogo baseado em textos de Simone de Beauvoir (1908-1986) sobre os últimos anos de vida de seu marido, Jean Paul Sartre (1905-1980) -, para nada menos que 15 mil pessoas.

“Fernanda Montenegro não é apenas uma mestra do teatro, mas também uma guardiã das múltiplas vozes que compõem o Brasil. Ela, ao longo de décadas, manteve uma companhia de teatro que cruzou as fronteiras do Brasil, levando a arte dramática a lugares onde o teatro era, muitas vezes, um raro visitante. Sua dedicação inabalável a esse trabalho itinerante reflete uma compreensão profunda do teatro como um espaço de encontro, de trocas simbólicas e de construção comunitária. Em um país continental como o nosso, onde as desigualdades culturais se manifestam com tanta força, a prática de Fernanda em levar o teatro aos mais variados rincões é uma forma potente de resistência e de valorização da cultura popular”, afirmou Ivam Cabral, ator, dramaturgo e fundador da companhia teatral Os Satyros.

Cabral nunca trabalhou com Fernanda Montenegro, mas após ser impactado por duas peças que viu com ela nos 1980 (As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e Fedra), teve a rara oportunidade de ser seu aluno em um curso no Teatro Guaíra, em Curitiba. “Foi assim que, por três dias, tive a chance de conhecê-la em uma sala de aula. Aqueles encontros foram inesquecíveis e marcaram profundamente minha trajetória no teatro”.

Petra Von Kant e Fedra estão entre as Fernandas teatrais preferidas de Ivam Cabral, mas ele recorda também de Dona Doida, uma adaptação da obra de Adélia Prado; Dias Felizes, de Samuel Beckett, dividindo palco com o marido Fernando Torres; e a cultuada The Flash and Crash Days, de Gerald Thomas, apenas ela e a filha Fernanda Torres. “No cinema não tem como não dizer que sua atuação em Central do Brasil, de Walter Salles, é absolutamente magistral; e sua Nossa Senhora em O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão, baseado na obra de Ariano Suassuna, é inesquecível. Ela não é apenas uma atriz que domina sua técnica com maestria, mas uma intérprete que infunde em cada personagem uma complexidade emocional e uma verdade cênica que transcendem o texto e tocam o espectador de forma visceral”.

Já a atriz, dramaturga e diretora Erica Montanheiro pensa um pouco e um pouco mais até chegar à conclusão que “é muito difícil definir a Fernanda, mas ela é certamente uma das principais referências para as atrizes brasileiras. A Dercy Gonçalves, por exemplo, é quem define o tempo da comédia no Brasil. Já a Marília Pera caminha no fio da navalha entre a comédia e o drama. E a Fernanda é o trabalho com a palavra, o poder da palavra, o domínio da palavra”.

Montanheiro também não teve a sorte de trabalhar com Fernanda Montenegro, mas guarda com carinho um encontro fortuito. “Foi no lançamento de um dos livros do Jô Soares, com quem trabalhei durante 11 anos. Estava lá na fila esperando pelo autógrafo quando percebi que quem estava na minha frente era a Fernanda. Quando a chegou a vez de ela pegar o autógrafo do Jô, os dois ficaram conversando e fui ali plateia desse encontro de dois monstros da cultura brasileira”.

E o que mais ela viu de Fernanda Montenegro que a marcou? Montanheiro lembra da “impressionante e inesquecível” montagem de Dias Felizes e da adaptação que Daniela Thomas fez de A Gaivota, de Anton Tchekhov, que trazia, em certo momento, “Dona Fernanda” como uma gaivota literal, fazendo barulhos e correndo pelo palco. “Muito engraçada, maravilhosa. Era algo que ninguém esperava da Dama do Teatro né, mas ela estava ali brincando como uma criança”. Montanheiro lembra ainda de se divertir horrores com personagem libertária que Fernanda Montenegro interpretou na novela Zazá, mas lembra sobretudo de Dora, a protagonista de Central do Brasil. “É um filme muito bonito e a Fernanda cria essa personagem cheia de contradições e com muitas camadas. E ela, ainda por cima, faz um melodrama com muito requinte”.

Fernanda por Bob Wolfenson, 2000

AZAR DO OSCAR

Fernanda Montenegro já era conhecida no teatro e na televisão, e tinha cerca de 35 anos, quando fez sua primeira protagonista para o cinema em A Falecida, adaptação de Nelson Rodrigues sob direção de Leon Hirszman. Suas prioridades sempre foram outras, e outros filmes notáveis só surgiram na virada da década de 1970 para a de 1980: Tudo Bem de Arnaldo Jabor e Eles Não Usam Black-Tie, novamente com Hirszman. 

Uma participação aqui, outra acolá, o tempo foi passando e outra protagonista apareceu somente no final da década de 1990. Sua Dora de Central do Brasil rapidamente alavancou o filme de Walter Salles a outro patamar de densidade dramática, trazendo consigo elogios derramados da crítica, uma fiel legião de fãs e muitas indicações e premiações por todo o mundo (filme e atriz ganharam os principais prêmios do Festival de Berlim, por exemplo). 

Então, quando vieram as indicações ao Oscar, uma nova esperança acendeu no coração do cinéfilo nacional. Se por um lado a estatueta para Melhor Filme Estrangeiro já estava na mão de Roberto Benigni e seu A Vida é Bela, a de Melhor Atriz, tão inesperada, poderia premiar o azarão e reconhecer Fernanda Montenegro mundialmente.

O momento da indicação ao Oscar foi registrado por uma equipe da TV Globo e quando o nome de Fernanda é anunciado, Walter Salles a abraça e ela diz apenas, meio com orgulho e meio com espanto: “Estou ali entre essas divinas criaturas maravilhosas. Louras”. E dá uma risadinha aérea. Suas “competidoras” eram Meryl Streep, Cate Blanchett, Gwyneth Paltrow e Emily Watson.

Mas em 21 de março de 1999, quando Jack Nicholson subiu ao palco do Dorothy Chandler Pavilion, o envelope que trazia em mãos tinha o nome de Gwyneth Paltrow. Foi uma das joias da coroa que o produtor Harvey Weinstein pagou – em termos de festas e agrados para membros da Academia – pelo sucesso de Shakespeare Apaixonado (que ganhou 7 prêmios naquela noite). Fernanda tanto não ligou que, quando um jornalista do New York Daily News perguntou se ela tinha planos para Hollywood, ela desdenhou elegantemente: “No Brasil, eu tenho uma carreira. Na América, eu tenho sotaque”.

Fernanda Montenegro pode não ter dado muita bola para o Oscar perdido, afinal continuou trabalhando incessantemente, mas a torcida brasileira nunca esquece uma injustiça. E não está só, afinal pouco mais de vinte anos depois, a atriz Glenn Close voltou a abrir a ferida em entrevista para a ABC News: “Honestamente, nunca entendi como é possível comparar atuações. Eu me lembro do ano em que Gwyneth Paltrow ganhou da atriz incrível de Central do Brasil. Eu pensei: ‘O quê? Isso não faz sentido’”, confidenciou. Não faz sentido mesmo, Glenn. Nunca fez.

Fernanda por Bob Wolfenson, 1995