quarta-feira, 1 de julho de 2009

ser hamlet, não ser wagner

do baú tirei um texto que foi publicado na edição de julho de 2008 da monet. é sobre o hamlet de wagner moura (sua mulher, sandra delgado, fez um bom making of da peça que chegou a ser exibido no multishow). simbora.

Aderbal Freire-Filho, Sandra Delgado e Wagner Moura durante os ensaios

HAMLET REALITY

O cenário estava todo ali, prontinho, e o palco permanecia vazio esperando qualquer coisa acontecer ao som de um ar-condicionado profissional. Era dia de folga nos ensaios para mais uma montagem de Hamlet, mas não uma qualquer, pois desta feita é Wagner Moura quem passa pela ação e os tormentos do príncipe dinamarquês. Barulho de porta se abrindo e é Sandra Delgado quem chega para explicar o que está acontecendo. Fotógrafa, mulher de Wagner e mãe de Bem, Sandra é a diretora de Além Hamlet, especial do Multishow que revela os bastidores do encontro de um dos mais badalados atores brasileiros da nova geração com o personagem-síntese da obra de William Shakespeare, e que foi interpretado pela primeira vez no distante início do século 17.

“Quando Wagner teve a idéia de fazer Hamlet começamos a assistir a alguns filmes [baseados em Shakespeare] e vimos Ricardo III – Um Ensaio, aquele de Al Pacino que mostra os bastidores de uma montagem da peça. Fiquei muito encantada e achei que seria uma grande oportunidade acompanhar todo o processo e mostrar o que acontece para que uma peça chegue ao palco.” Tudo certo com Wagner, mas para o documentário acontecer muitas outras autorizações precisariam ser dadas, e a mais importante era de Aderbal Freire-Filho, o diretor. “Ele disse uma coisa importante e definidora da minha presença dentro dessa construção: ‘Você pode fazer esse filme, mas com uma condição. Que você esteja presente o tempo todo. Aparecer de vez em quando vai quebrar o grupo. Ou você vira o olho do grupo, naturalizando sua presença, ou não tem conversa’. Porque uma câmera pode ser muito intimidadora, até para atores.”

Desde 18 de fevereiro, quando os primeiros ensaios começaram no carioca Galpão do Solar, a tímida Sandra Delgado vem acompanhando outros tímidos enlouquecerem, inclusive o próprio marido. Fato inédito, pois nunca acompanhou-o nas coxias da vida (e estão junto há cerca de sete anos). “Tudo é muito novo pra mim e acho que esse filme é uma resposta às minhas perguntas de como o teatro acontece, a relação do ator com o personagem, a construção do personagem, se é ele ou se não é ele. Saber o que se passa dentro da cabeça do ator e mostrar esse processo criativo, essa mágica de ver as coisas brotando. É um elogio ao teatro e ao fazer teatro, mas nada de rasgação de seda.” E ela, que nunca foi atriz, acabou ganhando um personagem, pelo menos nos ensaios. Sandra Delgado ficou conhecida pelo elenco como Fortimbrás, príncipe da Noruega, uma ameaça constante, mesmo que invisível por toda a peça, ao Reino da Dinamarca. É Hamlet que entra em cena soltando fogo pelas ventas. Quer dizer, Wagner Moura chega tranquilo, acena um ‘tudo bem’ e rapidamente vai ver alguma coisa no fundo do palco.

Sandra prossegue: “Fazendo esse filme descobri que a vida do ator é muito difícil. Tudo é doloroso e muito exposto. Ao mesmo tempo são pessoas que têm uma disposição única para zerar, abrir novas portas, construir e reconstruir. São muito destemidos e sensíveis. Essa descoberta bateu em mim”, e solta um sorriso de quem encontrou segredos sobre alguém próximo. Detalhe: Sandra foi contemporânea de Wagner no curso de Comunicação Social na UFBA e o reencontrou anos depois no Rio de Janeiro, e apesar dos dois terem feito trabalhos juntos nos tempos da faculdade nunca haviam estado sob o mesmo projeto. Chega então, e de uma vez por todas, Wagner Moura.

“Detesto que pessoas estranhas venham ver os ensaios. Sinto-me invadido. Por isso só uma pessoa com a sensibilidade da Sandra poderia fazer isso. Tanto que não vi nada do que ela fez porque tenho total confiança em sua ética e bom gosto. Acho também que não é bom pra mim, antes da estréia, me ver. No mais, a gente conversa muito sobre o filme e a peça, existe uma troca muito legal. O que ela está procurando é revelar o processo criativo de um monte de gente e saber como essas pessoas tornaram Hamlet acessível à platéia de hoje e mostrando como ele é nosso contemporâneo. Ele vai enterrar a gente, cara.” Sentado à beira do palco, o ator que virou febre nacional após interpretar outros dois homens atormentados, o vilão Olavo na novela Paraíso Tropical e o violento Capitão Nascimento no filme Tropa de Elite, parece ansioso por mostrar seu Hamlet, idéia fixa desde que leu a peça pela primeira vez aos 15 anos.

O príncipe que volta à corte para vingar a morte do pai e que usa um grupo de teatro para concretizar o plano é o sonho de 10 entre 10 atores, mas qual é a razão deste fetiche? “O ator e diretor Steven Berkoff escreveu um livro chamado I Am Hamlet, no qual disse o seguinte: ‘Não existe erro de escalação para Hamlet porque ele é um personagem tão complexo e vivo, tão mais inteligente e bem humorado, que nos comporta a todos’. E outra coisa, nenhum Hamlet é igual a outro porque nenhum ator vai dar conta completamente do personagem. Isso não existe. Cada um mostra um pouco de si e esse pouco de si é um pouquinho dele.”

Segundo o renomado crítico literário Harold Bloom, Hamlet é o personagem mais irônico e camaleônico na obra de Shakespeare. Não acredita em nada, muito menos em suas próprias palavras, vai de uma profunda melancolia até ao mais enérgico nervosismo, e suas falas ocupam dois terços do mais longo texto do autor. “Acho que nenhum ator passar incólume por Hamlet. Tem coisas que ainda não sei dizer, coisas que vou descobrir com a temporada, porque o teatro ainda não se deu, falta ainda o público. Mas tentando ser objetivo, fiquei impressionado como o caminho de Shakespeare é reto, sem psicologismos, sem esforço. Basta dizer aquelas palavras para a ação e a magia surgirem. E ele foi escrito para esse lugar”, e bate ruidosamente com a palma da mão no palco.

“O meu [Hamlet] está sendo feito a partir de mim, da minha vida, do jeito que sou, do ator que sou. Gosto de ser um ator físico em cena e acho que posso emprestar isso a ele, principalmente na parte da loucura. Enfim, sou eu mesmo dentro da grandeza que é esse cara”, e bate mais uma vez com a palma da mão no palco. Ser ou não ser não é mais questão porque, pelo visto, Wagner Moura já é.

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