sábado, 5 de novembro de 2011

olhar mais, olhar além

segundo perfil para a revista oas (o primeiro foi do claude troisgros), esse do escultor e artista plástico mário cravo jr. foi um tanto mais difícil de fazer. personagem complexo, profundo, octogenário, cravo jr. é lenda viva cheia de histórias e foi uma grande pena não poder tê-lo encontrado pessoalmente (como aconteceu com aldemir martins). só dei uma arranhadinha nessa superfície de tantas texturas. saiu isso.

o fotógrafo mário cravo neto, morto precocemente em 2009,
e o pai mário cravo jr.


POETA DAS FORMAS E MATÉRIAS

Existe um homem na Bahia que teima ver coisas onde elas não existem. Pode ser um pedaço de madeira queimada, uma pilha de pneus ou então chapas de acrílico. Bastou o sujeito pousar seus olhos azuis em algumas dessas coisas para que elas se transformem em bichos alados, um Cristo crucificado ou apenas forma, outras formas. E ele vem olhando o mundo assim mais ou menos desde quando nasceu em 13 de abril de 1923, na cidade de Salvador, com o nome de Mario Cravo Jr.

Uma das principais referências da escultura moderna no Brasil, o baiano segue, aos 88 anos, trabalhando sem parar na fundação que leva seu nome, sediada no Parque Metropolitano de Pituaçu, e que abriga milhares de grandes, pequenos ou gigantescos trabalhos seus. O que Cravo viu neles e no que eles se transformaram acabaram por definir visual e graficamente uma nova Bahia, sem mais, nem menos (não é a toa que a monumental “Fonte da Rampa do Mercado”, de 1970, é o símbolo do Estado).

“A Bahia é uma paixão para todo homem, não importa a sua origem. É um estado de espírito. Nossos sincretismos, etnias e costumes ainda encantam aos sensíveis e interessados que nos visitam. O índio, o negro e o branco junto a outros tons, amarelo, vermelho e semitons de pele e almas, aqui são fundidos e amalgamados. Tenho a sorte de aqui ter nascido. Cresci e descobrir a veia criativa convivendo neste mundo afrodisíaco de nossas praias, igrejas, festas populares e candomblés”, explicou Cravo em rara entrevista por e-mail.

fonte da rampa do mercado, 1970

Mas nada melhor que um amigo muito próximo para definir tal veia criativa (alguns diriam fogo) do escultor. No livro Mario Cravo Jr. Desenhos, lançado em 1999, Jorge Amado afirmou que “Mario não sabe por ter aprendido, sabe por trazer dentro de si. Aprendeu, isso sim, seu duro ofício de escultor, seu dramático artesanato, sua consciência de trabalhador. Mas a criação, essa está dentro dele, como se, no momento de criar os pássaros impossíveis, os peixes misteriosos, os santos e os exus, o seu mundo sofrido e exaltante, como se, nesse momento, ele contivesse toda a velha cultura do nosso povo, como se em suas mãos estivessem todo o saber e toda a arte do povo da Bahia.”

A verdade é que ainda criança descobriu o gosto e uma facilidade natural pelo desenho ao mesmo tempo em que foi tomado por uma intensa paixão pela astronomia. Criava na cabeça e no papel máquinas interplanetárias numa versão pessoal do planeta Mongo, principal cenário das aventuras de Flash Gordon, seu herói predileto. Foi levando esses dois amores adolescência afora até descobrir que precisaria encarar a engenharia e muitos cálculos para estudar as estrelas.

A descoberta da argila e uma série de viagens reveladoras - sobre arte popular, geologia, mas não só - pelo interior da Bahia, no final da década de 1930, acabaram lhe dando a confiança necessária para assumir que suas mãos tinham o poder de dar forma e vida ao inanimado. Era escultor. Mas antes era preciso formar-se.

Entre 1945 e 1949, o inquieto e intenso Mario Cravo Jr. teve nada menos que três mestres em três cidades diferentes. Em Salvador trocou a argila por cedro e jacarandá ao trabalhar com Pedro Ferreira, o último grande santeiro baiano. Então partiu para o Rio de Janeiro e conheceu novas técnicas no ateliê do escultor Humberto Cozzo.

Para finalizar esses anos de formação, foi aluno especial do escultor croata Ivan Mestrovic, um dos discípulos mais conhecidos de Auguste Rodin, na Universidade de Syracuse, no Estado de Nova York, Estados Unidos. Descobriu o gesso e as esculturas de grandes proporções. E o ano e meio que se seguiu em Nova York, no boêmio bairro de Greenwich Village, lhe deu a centelha de energia que só o encontro de pessoas criativas em um ambiente favorável pode dar. Cruzou caminho com artistas como Heitor Villa-Lobos, Max Ernst e Marcel Duchamp, quase sempre por intermédio de Maria Martins, escultora e embaixatriz brasileira nos Estados Unidos, e sentiu que no Brasil sua querida Salvador poderia muito bem ser (e era) um lugar assim tão cheio de energia e possibilidades artísticas e não apenas Rio de Janeiro ou São Paulo. Então voltou à sua terra em 1949.

cruz caída, 1999; crédito: girardi photos

Essa mistura de escolas e vivências, aliada ao inspirador calor baiano e a sua própria personalidade – que herdara a política do pai Mário da Silva Cravo e poesia da mãe Marina Jorge Cravo –, fez com que Mario Cravo e seu célebre ateliê no Largo da Barra se tornassem os principais agregadores de uma geração que injetou modernidade e liberdade nas artes plásticas brasileiras, a geração Caderno da Bahia. Passaram por lá artistas como o grande amigo Carybé, Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Pierre Verger, Jenner Augusto, Rubem Valentim, Agnaldo Manoel dos Santos, Pancetti, Aldemir Martins, Marcelo Grassman e Djanira.

Trabalhando euforicamente, desenhando sem descanso, Cravo foi criando um espantoso corpo de obra que ia de formas vegetais aos ferros do candomblé, passando por cerâmica indígena, danças populares, sexo, lutas, carrancas do Rio São Francisco, e sempre com o melhor aproveitamento possível das formas dos materiais que caíam em suas mãos. “O material que mais me identifico entre os que tenho trabalhado? O próximo, sim, aquele que no (amanhã) ainda poderá ser ofertado ao velho escultor. Ainda estou com apetite, meu amigo, e felizmente minha fome e inquietude continuam atuando. Enquanto tiver alguma energia ativa, neste ‘velho corpo’, sinto que todos os materiais podem ser transformados e materializados em mensagens, em arte.”

E foi assim que ganhou, no início dos anos 1950, prêmios nas primeiras Bienais de Arte Moderna em São Paulo, tornou-se professor na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), representou o Brasil na Bienal de Veneza em 1960, ganhou bolsa de artista residente patrocinada pela Fundação Ford para trabalhar e criar em Berlim entre 1964 e 66 e, na volta, tornou-se diretor do Museu de Arte da Moderna da Bahia.

“Nada chega a nós (no mundo da criação) se estamos ou somos passivos. O acaso também existe, ele ajuda e nos afeta, o problema é que aqueles que ficam estáticos aguardando o acaso certamente não conhecem o insubstituível prazer da criatividade”, e desse mal Mario Cravo Jr. nunca sofreu, tanto que, curioso como sempre, acabou sendo pioneiro em exposições ao ar livre de (invariavelmente grandes) esculturas contemporâneas. Uma espécie de comunhão da arte com a natureza, com o terreno, com as pessoas de passagem.

Em 1994, com o estímulo de Jorge Amado e de outro grande amigo, o pintor Carybé, além do apoio do Estado, o Parque de Pituaçu foi inundado com suas esculturas, sendo que cerca de 1.000 obras foram doadas pelo próprio artista, e desde então virou endereço do Espaço Mário Cravo. Foi (e é) uma bela e oportuna homenagem a um homem que tanto fez por sua terra, um artista de tantas obras, um pai de quatro filhos (frutos do casamento com Lúcia, mulher de toda sua vida).

“Filhos, netos e bisnetos são os elos da corrente da natureza e vida do homem em sociedade, em fim da memória de nossa história humana. Meus representantes são os irmãos em arte-fazer, colegas e participantes. E tão natural quanto a floração da semente, o broto só cresce e desenvolve se houver húmus, ambiente favorável”, reflete o artista, poeta delicado das formas, sobre si e os seus. Certa vez, Mário Cravo Jr. disse que é “herdeiro (felizmente) de uma cepa de rebeldes, poetas, sonhadores e lutadores.” Sorte a da Bahia, sorte a do Brasil.



Cosmogonia Cravo from Ayrson Heráclito on Vimeo

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