domingo, 22 de janeiro de 2012

red hot + rio 2, a missão

lembro que quando foi lançado o primeiro disco-tributo produzido pela organização red hot (fighting aids through popular culture) tive o primeiro vislumbre do choque de gerações numa crítica musical. é que o paulo francis, acho que na época estava na folha, ficou puto das calças com o que artistas como jungle brothers e neneh cherry, entre outros, fizeram com clássicos de cole porter no ótimo (não pra ele) red hot + blue (1990, também estavam presentes gente como u2, tom waits, k.d. lang, fine young cannibals e jimmy sommerville). tinha 16 anos e pensei, “olha só, o tiozão não sabe o que tá acontecendo, não tá entendendo nada”. e o projeto ainda tinha uns clipes da pesada dirigidos por wim wenders, jim jarmusch, alex cox, jean-baptiste mondino, jonathan demme, percy adlon, neil jordan, etc.

vinte e um anos se passaram, a ong lançou outros discos – destaque para red hot + rio (1996, sobre bossa nova), onda sonora: red hot + lisbon (1998, sobre portugal, áfrica portuguesa e um pouco de brasil), red hot + riot (2002, sobre fela kuti) e dark was the night (2009) – e no ano passado veio red hot + rio 2 (2011), o décimo sétimo desse projeto surpreendentemente longevo e de alta qualidade. enfim, ouvi o disco duplo (34 músicas) ali por volta de setembro e gostei bastante de muita coisa, mas quando chegou a hora de fazer as listinhas com os melhores do ano não sabia se colocava nos gringos (a produção geral é de lá) ou nos nacionais (afinal a onda do trabalho é rever o tropicalismo e, não contei, mas acho que mais da metade dos artistas envolvidos ou músicas são brasileiros). travei nisso e o disco não entrou em nada, nem entre as músicas. puta sacanagem. então pensei em fazer uma postagem só pra ele como uma espécie de recompensa. ontem, numa passada rápida na fnac pinheiros, vi que tinham lançado aqui (som livre) e que o preço estava bem honesto (22,90). era a deixa e lá fui eu ouvir pela quinta ou sexta vez.

a produção musical de red hot + rio 2 é do brasileiro béco dranoff em parceria com paul heck e john carlin (mario caldato jr. e kassin foram consultores) e a proposta é rever o tropicalismo das mais diversas formas musicais, misturando artistas, brasileiros e gringos, remixes, gerações, clássicos da época e músicas novas, o nosso bom e velho samba do criolo doido. o disco 1 se chama red, enquanto o disco 2 é o hot. não existe nenhuma diferença conceitual perceptível a olhos nus entre um e outro.

alice smith + aloe blacc - "baby" (official music video) from red hot on vimeo

red

essa “baby”, com aloe blacc e alice smith, abre o disco, é uma delícia de ouvir (mesmo com alguns cacoetes eletrônicos lounge do que acabou virando a drum’n’bossa), e tem o plus a mais da presença de blacc, que puta voz, cantando versos caetânicos e com um pandeiro ao fundo. na sequência vem a sempre sensacional “tropicalia”, que o beck lançou no seu mutations (1998), e que aqui ganha o reforço suingado de seu jorge, inclusive cantando uma versão da letra em português. então, de repente, aparece o pessoal do clube da esquina com “um girassol da cor do seu cabelo”, só que cantada pela americana mia doi todd e o sueco-argentino josé gonzález. a linda música de lô e márcio borges é cantada em português (impossível traduzí-la) e sobrevive com dignidade. dá pra ver que eles provavelmente foram os que mais capricharam no “brasileiro” e fizeram um belo arranjo folk, só que com muito mais camadas e texturas. e a música seguiu doce como sempre.

rh loft party: mia doi todd + josé gonzález from red hot on vimeo

coco quadron, a vocalista do duo dinamarquês quadron, é muito simpática, mas acaba destruindo “samba de verão” (marcos valle, que é da segunda geração da bossa nova, pré-tropicalista portanto) com sua tentativa de português (e, com mil diabos, a letra em inglês é até boa e ela não arriscaria o pescoço). a parte musical é um tanto mais lenta, meio barzinho, mas se sustenta. daí vem “boa reza”, canção de vanessa da mata cantada em dueto com seu jorge e com a companhia luxuosa do grupo almaz. não dá pra entender porque, conceitualmente, a música estaria nesse disco “pós-tropicalista”, mas ela é boa demais para se perder por aí com sua pegada afro-brasileira, religião, guitarra massa de lúcio maia e batuque. bem, talvez seja isso.

o soulman john legend aparece com sua “love i’ve never know”e a coloca em ritmo de bossa leve com pandeiro. boa de ouvir, mas sem surpresas. já “nascimento (rebirth) – cena 2” eu não entendi muito bem a proposta, confesso, mas tem aloe blacc novamente, e de um jeito mais solto e moderno, e clara moreno (filha de joyce e nelson angelo) fazendo uns “eparará-pumdê-pumdêé”. é eletrônica em algumas partes e não sei bem o que isso quer dizer. então é a vez de curumin, certeza de som bacana, que faz uma ótima regravação de “ela” (gilberto gil), devidamente remixada pelo produtor americano ticklah (antibalas, easy stal all-stars e dap kings). e a “baby” de aloe blacc e alice smith volta reprocessada como “old dirty baby dub version” pelo produtor canadense doc mckinney. sei lá, não cola muito e nem dub é, na verdade.

uma das boas surpresas do disco é a versão de “um canto de afoxé para o bloco do ilê” feita pelo coletivo superhuman happiness (que tem gente do antibalas, fenomenal handclap band, passion pit, tv on the radio e the roots) com a banda cults, todos americanos. é bem próxima da original verdade seja dita, mas consegue ter uma diversão própria com direito a um delicioso sax safado oitentista que lembra o do mauricio pereira n’os mulheres negras. e do nada aparece um tal de om'mas keith (the sa-ra creative partners) que se derrama cafonamente em “mistérios”, mas como a música é de joyce, e eu tenho lá meus problemas de ouví-la, passei disperso, batido. tudo muda em “aquele abraço” com clima de festão multicultural unindo forró in the dark, brazilian girls e angélique kidjo, que faz um breque de gala rimando na língua que ela fala em benin e que não faço ideia qual seja.

mia doi todd volta com uma versão bem respeitosa de “canto de iemanjá”, quem é um dos clássicos afrosambas de baden e vinicius, o que significa que o tom fica mais solene e quebra o ritmo do disco. que não melhora com “terra”, com o próprio caetano cantando em 1978, e remixada muito discretamente, quase preguiçosamente, pelo prefuse 73 (maior frustração do disco, talvez). aí vem a linda “nu com a minha música”, que caetano lançou no outras palavras (1981), e aqui é cantada com muita delicadeza por marisa monte, devendra banhart e rodrigo amarante. desce que é uma boniteza. e bebel gilberto, muito espertamente (o que tem sido raro nos últimos tempos), faz um “acabou chorare”no estilo menos é mais, fechando um ciclo de quase 40 anos, já que foi ela falando ainda bebê que inspirou o nome da música (joão gilberto ia no sitio dos novos baianos em campo grande, rio de janeiro, e contava histórias de sua filha bebel). pra encerrar o disco vermelho, “dreamworld: marco de canavezes”, parceria de caetano veloso e david byrne, gravada originalmente em onda sonora: red hot + lisbon e uma ótima batucada eletrônica em homenagem a carmen miranda (que nasceu em marco de canaveses, portugal).

rh loft party: beirut from red hot on vimeo

hot

o disco quente começa com essa música aí logo acima. zach condon e seu pessoal do beirut já tocavam “o leãozinho” em shows, então a escolha veio naturalmente e o resultado é um belo caetano melancólico tendo como base um cavaquinho claramente não brasileiro (uma levada meio ukelele). já o pessoal do tha boogie pegou “panis et circensis” e a transformou em um rockinho com timbres parecidos com o strokes (ou seria coldplay?) e nada mais que isso. difícil errar “bat macumba”, principalmente se forem mantidos a psicodelia e o batuque, e os americanos do of montreal ainda por cima contam com a presença guitarrística de sérgio dias (mutantes). tudo em casa.

e olha o clube da esquina novamente! “tudo o que você podia ser”, de lô e márcio borges, surge com marcos valle e a phenomenal handclap band, cuja vocalista laura marin manda um bom português. arranjo acertado com teclados vintage e guitarra distorcida. daí que vem joyce, em carne, osso, voz e “banana”(gravada originalmente em feminina, 1980) e não tem madlib (e um tal de generation match) que salve essa bossa hippie de louvor às coisas naturais brasileiras.

agora, pós-tropicalismo mesmo é reunir marina gasolina (ex-bonde do rolê), o produtor francês secousse (etienne tron) e “freak le boom boom”, clássico pop trash de gretchen. o resultado é sensacional e certeza de sucesso em qualquer pista (e ainda rolou, fora do projeto, um remix mais pesado feito pelo pessoal do cansei de ser sexy). enquanto isso, o sambinha poliglota “tropical affair” me pareceu confuso, meio com cara de publicidade, apesar das fortes presenças de thalma de freitas, money mark (beastie boys) e joão parahyba (trio mocotó). fortemente latina desde seu surgimento em 1967, “soy loco por ti, américa” (gilberto gil e capinan) veio no disco em interpretação de carlinhos brown (ou seria carlito marrón?) com os cubanos dos los van van e órgão de money mark. tudo direitinho, no jeito.

já “roda”, música pré-tropicalista de gilberto gil gravada originalmente por elis regina em 1966, ganha uma nova cara com os ótimos arranjos de sopros da orquestra contemporânea de olinda (e os vocais de maciel salu e tiné) e um ótimo breque rimado sob responsabilidade de emicida. a qualidade continua lá no alto com “berimbau”, outro afrosamba de baden e vinicius só que menos solene, que no disco é cantada lindamente pela cabo-verdiana mayra andrade com acompanhamento suingadão do trio mocotó. outra voz feminina atual e das melhores, a de céu, protagoniza uma ótima “it´s a long way” (do espetacular transa, 1972) acompanhada do produtor apollo nove, joão parahyba, betão aguiar e os djs zegon e squeak e. clean (do projeto n.a.s.a.).

mais pós-tropicalismo no encontro dos pernambucanos dj dolores, otto, fred 04, isaar e chico science (in memoriam) com o cigano punk ucraniano global eugene hutz (gogol bordello). é “a cidade”, que continua muito atual em tempos de pinheirinho, favela do moinho e cracolândia, exemplos recentes de como o poder público (no caso, o governo de são paulo) se une a especulação imobiliária para bater e expulsar viciados e sem-teto, pobres todos, de áreas cobiçadas. a cidade não para, a cidade só cresce, o de cima sobe, o de baixo desce.

javelin + tom zé from javelin javelin on vimeo

taí um pouco do encontro de tom zé, os americanos do javelin e “ogodô, ano 2000”, uma das músicas mais profundamente tropicalistas do baiano e que aqui ficou em boas mãos. é outra canção difícil de ser estragada. como também é o caso da jobiniana “águas de março”, que no disco ganha versão inspirada com fernanda takai e moreno veloso nos vocais e o alemão atom™ (señor coconut) e o japonês toshiyuki yasuda nas programações. não entendi “show me love”, do grupo twin danger de vanessa bley, dentro do conceito do disco. quer dizer, é uma bossinha de tempos atuais, mas falta mistura, falta molejo. então vem rita lee com “pistis sophia”, um lamento sertanejo moderno (muito mutantes) com participação de joão parahyba. e aí o disco quente se encerra com uma faixa bônus, a linda “um dia desses” em dueto de kassin e cibelle (essa música foi gravada originalmente por adriana calcanhotto no disco maré, 2008, e é um poema de torquato neto musicado por kassin). uma música de amor interiorano bem brasileira toda riscada por intervenções eletrônicas. coisa mais linda. diga se não?


discos-tributo são sempre irregulares, impossível ser diferente, mas red hot + rio 2 é repleto de grandes achados e encontros, e faz um bom apanhado do que foi e por onde se encontra o nosso tropicalismo em tempos globais.

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