sábado, 5 de setembro de 2009

jabs, punchs e overdrives

tenho um certo fascínio por histórias de grandes lutas ou lutadores de boxe. engraçado que do esporte não gosto (quase) nada. mas tem algo de muito dramático na entrega, física e psicológica, desses esportistas. acho que é o mesmo fascínio que tenho por john ford, faroestes, clint eastwood e afins. em tudo, figuras masculinas solitárias diante de um destino inescapável.

lembro que logo no início da faculdade (e de são paulo), em meados da década de 1990, assisti ao sensacional documentário quando éramos reis (1994), de leon gast. a história da dramática luta de muhammad ali e george foreman no ano em que nasci (1974) me nocauteou de jeito (com o perdão do trocadilho). a partir daí me interessei por histórias de boxe, quase sempre com muhammad ali como protagonista. li o livro a luta (cia. das letras, 1998), de norman mailer, que também é sobre essa disputa (mailer estava lá e é um dos depoentes do documentário); o homem cinderela (objetiva, 2007), de jeremy schaap, sobre james braddock; e as reportagens "o perdedor" (sobre floyd patterson) e "joe louis: o rei na meia-idade" de gay talese, que estão em fama & anonimato (cia. das letras, 2004); além de muita coisa na tv e, claro, filmes como fat city - cidade das ilusões (1972), touro indomável (1980) e menina de ouro (2004), entre outros.
muitas histórias, vitórias e, acima de tudo, derrotas (é impressionante como no boxe, mais que em outros esportes, é enorme a quantidade de gente que se dá mal, mesmo quando vence).


um dos cartazes de divulgação da luta

tudo isso me veio a cabeça após assistir o ótimo documentário thrilla in manila (2008), de john dower (que também assinou documentários sobre kurt cobain e o cosmos, aquele time de futebol intergaláctico montado nos eua com pelé, beckembauer, cruyff e outros). produzido pela hbo, o longa recupera outra luta histórica de ali, desta vez muito mais dramática e contra joe frazier, na disputa pelo título em 1975.

como na luta pelo cinturão no ano anterior entre ali e foreman em um pobre e convulsionado congo (ex-zaire) do ditador mobutu, a de 1975 aconteceu em uma filipinas mergulhada no caos ostensivo e violento de ferdinand marcos e sua extravagante mulher, imelda (que dá depoimento!). os ditadores injetavam uma nota preta nas disputas de peso-pesados porque tanto atraiam a opinião pública internacional quanto anestesiavam conflitos internos. cenário em chamas pr'um conflito idem. ó o trailer abaixo.



um dos grandes trunfos do filme é colocar certos pingos nos is, como por exemplo, recuperar a dignidade e o talento de frazier e mostrar que ali - apesar do gênio, da inteligência, da força, da atitude revolucionária, da espirituosidade, etc. - era também cruel, falso, manipulador e outros etc. pode colocar também manipulado nesse balaio, afinal a nação do islã ditava muito de seu discurso explosivo. nessa hora é pertubador, mesmo que óbvio em retrospecto, ver que a nação e a ku klux klan não passam de dois lados da mesma moeda (ali esteve em reuniões da klan em encontros de aliança entre as instituições, afinal possuiam o mesmo objetivo final, a saber, segregar totalmente as raças).

era ali que apontava o dedo em riste a frazier acusando-o de vendido, de estar do lado do inimigo branco, além de ofendê-lo ao chamá-lo de pai tomás e gorila (ofensa ainda pior de negro para negro). logo frazier que teve uma infância mais dura que ali, que esteve do seu lado quando este perdeu a licença para lutar após se recusar a ir ao vietnã, que lhe emprestou dinheiro, etc. as mensagens segregadores da nação do islã aliadas a um alucinado e certeiro senso de marketing pessoal de ali destruiram uma respeitosa amizade. dá pra sentir nos depoimentos de frazier a tristeza que essas lembranças lhe causam.


joe frazier

mas ali fez publicamente com frazier o mesmo que fez com foreman: usou um discurso racial para desqualificar seu oponente. só que o embate ali X frazier tinha uma adicional tensão pessoal (principalmente pra ali). esse de 1975 foi a terceiro (e último) entre os dois. flashback rápido - frazier, que conquistou o título enquanto ali estava impedido entre 1967 e 70, defendeu com ferocidade o cinturão e nocauteou ali em 1971 (a primeira vez na vida que alguém fez isso com ali). o derrotado não se abalou e saiu disparando que para os negros ele tinha sido o vencedor e que frazier ganhou por decisão dos brancos. dois anos depois, frazier foi esmagado em apenas dois rounds pelo jovem desafiante george foreman e perdeu o título. no agitado ano de 1974 frazier e ali voltaram a se encontrar, para saber quem lutaria pelo cinturão contra foreman, e ali ganhou por pontos em uma decisão contestada por muitos. foi assim que ali e foreman se pegaram no zaire, na luta retratada por quando éramos reis, ali venceu heróicamente e frazier teve a oportunidade de tentar o título mundial dos pesos-pesados. fim do flashback, voltamos a thrilla in manila e ao segundo semestre de 1975.

por motivos de transmissão televisiva, a luta foi marcada pra acontecer de manhã (muito quente em manila). ali estava certo e confiante de sua vitória e bateu muito em frazier nos primeiros rounds, mas como este não cedia começou a ficar cansado. aí frazier partiu pra cima e virou o jogo totalmente, para a surpresa de muitos. enquanto a luta se aproximava do seu fim no 15o. round, com frazier ganhando por pontos, um segredo muito bem guardado mudou o novamente o destino de todos. em 1965, frazier sofreu um acidente em um treino e perdeu parte da visão do olho esquerdo. só ele e seu técnico sabiam. então, quando chegou o 14o. round, o rosto de frazier estava tão inchado - seu rosto inchava mais rapidamente que o de ali, como dá pra notar bem na luta de 1971 - que seu olho bom, o direito, começou a sumir. a essa altura alguns jornalistas declaram à câmera que temiam pela morte de um dos dois tamanha era a violência do confronto. quase uma briga de rua, batalha em campo aberto.


joe frazier e muhammad ali em ação sanguinária no ringue filipino

intervalo entre os rounds 14 e 15, caos em ambos os corners. frazier já não conseguia ver mais nada, mas queria ir até o fim. ali estava morto de cansado e enormente surpreso por seu oponente ainda estar de pé. por poucos segundos, a história não vira outra. quando estava quase pra desistir, ali recebe com ainda mais surpresa a notícia que o técnico de frazier jogou a toalha. acompanhá-lo, nos dias de hoje, vendo as imagens televisivas da luta pela primeira vez é de arrepiar, não dá pra descrever em palavras. a impotência diante do passado junto com o orgulho do guerreiro, tendo como cenário uma academia caindo aos pedaços na periferia, é... na falta de uma palavra melhor... foda.

já no pós-luta ali tentou uma reconciliação pública com frazier, mas este se negou alegando que o oponente deveria "ter ido falar com ele primeiro". outras tentativas de perdão surgiram no decorrer desses anos, mas frazier nunca mais abriu a guarda para seu ex-amigo. a vida de ambos não foi mais a mesma depois de "thrilla in manila": frazier não teve mais chances de disputar o cinturão, e ali ainda segurou um pouco, mas a derrocada também veio forte, e depois o parkinson que acabou por silenciá-lo aos poucos. frazier tem certeza que foi um castigo divino.

p.s. 1: dois discos altamente recomendáveis fizeram a trilha para este texto. um tem tudo a ver, mas surgiu coincidentemente, e é the messengers (episode 1: fela kuti) (2009), parceria de j. period & k'naan. o outro é o instrumental rain music (desmonta, 2009), de nathan bell, que comprei lá na lojinha do espaço + soma. só depois vi que o disco foi masterizado pelo bróder tiago munhoz (mamelo sound system/contrafluxo).

p.s. 2: e não custa nada colocar músicas relacionadas ao bom e velho muhammad ali, mas da época de seu nome de batismo, cassius marcellus clay. primeiro, jorge ben que gravou sua homenagem no disco clássicos negro é lindo (philips, 1971).



mas tem também um reggae malandro de dennis alcapone, provavelmente do início da década de 1970, que achei na coletânea soul jazz records presents 400% dynamite!.


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