foi no segundo semestre do ano passado que fui chamado por zé ruy gandra pra fazer uma reportagem pra revista do fantástico nº6 (que foi descontinuada logo depois e que promete voltar, anualmente, em edições especiais). o assunto era humor, mais precisamente o humor popular da cia. os melhores do mundo. conhecia o grupo apenas de cartazes de suas peças em jornais e só pouco antes de entrevistá-los fui saber que eles também fazem parte do elenco do zorra total. lembro que pesquisando na internet sobre o grupo não achei uma mísera linha, nada, a não ser sinopse das peças ou links de videos, o que acabou me deixando com ainda mais vontade de escrever sobre. mas para minha grande frustração (e imagino que pra eles também), a reportagem acabou caindo, na última hora, da versão impressa e só saiu no site da revista. paciência.
bem, o humor salva a gente e as horas que passei com o sexteto brasiliense-goiano-carioca foram impagáveis (mais ou menos duas horas de entrevista e depois uma hora e meia de peça, no caso, a "bíblica" hermanoteu na terra de godah). o humor deles não é bem o que mais gosto, mas e daí?! eles são muito bons no que fazem e ponto. sente o drama, quer dizer, a comédia. p.s. em dezembro: a peça ganhou uma boa versão em dvd com cenas de bastidores, o curta à espera da morte, etc. no site da cia. dá pra comprar.
CHULOS, GROSSEIROS & ETC.
Unindo escolas de humor que vão de Chico Anísio a Monty Python, os integrantes da Cia. Os Melhores do Mundo estabeleceram um novo patamar de sucesso para a comédia popular nacional
A bagunça do camarim parece domada, tranquila, adulta. Frutas, salgados e água mineral não foram tocados em uma mesa de canto e a televisão está sintonizada em um jogo de bocha para atletas com deficiência física. Não faz nem cinco minutos e a primeira piada surge rápida e incorreta. Esse é o camarim da Cia. Os Melhores do Mundo, sexteto de comediantes formado em Brasília que passou por São Paulo para apresentar, com casa cheia a duas sessões por dia, a peça Hermanoteu na Terra de Godah. Lá do lado de fora, uma fila começa a se formar duas horas antes do espetáculo começar.
Agora, no presente momento, quatro dos seis integrantes dão as caras. Todos estão beirando a casa dos 40 anos. O goiano Jovane Nunes, o mais falante, o carioca Victor Leal e os brasilienses Ricardo Pipo e Adriana Nunes, a única mulher do grupo. O marido de Adriana, o carioca Adriano Siri, está tirando um cochilo em outro cômodo da casa de shows, enquanto o brasiliense Welder Rodrigues, quando aparece, mantém-se calado. Logo ele, um dos mais conhecidos do grupo por participações no programa Zorra Total e por interpretar Joseph Klimber, esquete mais conhecido do espetáculo Notícias Populares, que chegou ao DVD e vendeu surpreendentes 25 mil cópias. “É que falo muita merda, por isso sou treinado para não dar entrevistas”, confidencia gaiatamente antes de dar no pé mais uma vez. Podemos começar?
O grupo surgiu em 1995, confere? “É, estamos com essa formação desde abril de 1995. 21 de abril de 1995. Mas eu, o Pipo e o Welder já trabalhávamos em outras companhias”, explica Adriana, ao que Jovane interrompe e dispara: “Sabe que esse dia é feriado em Brasília?”. Todos caem na gargalhada. Aliás, todos são responsáveis por tudo nas produções do grupo, desde o texto até o figurino, passando pela sonoplastia, músicas, cenários e até a arte gráfica dos cartazes. “Quando o Siri entrou a gente logo percebeu que ia dar certo. Nossas opiniões batiam, bem como o que cada um acha e quer do humor, fora o talento de um que complementa o do outro. No começo, a gente lotava casas de cento e poucos lugares em temporadas de três ou quatro semanas. No meio do caminho já preparávamos a próxima peça e assim por diante. Teve ano que fizemos nove”, relebra Jovane e Pipo completa que “sem querer criamos rapidamente um grande repertório, e que é patrimônio nosso”.
Ele tem razão. O repertório da Cia. já possui cerca de 30 peças, sendo que metade foi escrita entre os anos de 1995 e 98. Atualmente, em turnês nacionais, apresentam apenas duas: Notícias Populares e Hermanoteu. A última que escreveram foi América, em 2004. “A gente parou de fazer peça nova, pelo menos por enquanto. Temos que usar o nosso repertório. Aconteceu também que algumas peças foram canibalizadas. Piadas boas de peças antigas, que a gente não monta mais ou não gosta, foram colocadas em outras. Aprendemos isso com a [extinta companhia aérea] VASP que fazia aquele negócio com as peças reutilizadas de aviões antigos”, e Jovane ri da própria piada.
Então, do nada, aparece uma garrafa de uísque. “Agora essa matéria sai!”. É Jovane puxando mais um coro de gargalhadas. “Olha, é que sempre fomos ambiciosos. Queremos mostrar nossas peças em todas as capitais brasileiras, criar peças para montar no exterior, usar mais a internet e fazer filmes. Com isso queremos marcar nosso nome na história da comédia brasileira. Queremos virar referência”. Modéstias à parte, o sexteto planeja transformar Hermanoteu em longa, principalmente após a experiência com o curta À Espera da Morte, produção caprichada feita em 2004, totalmente falada em russo e disponível na internet. Aliás, falando na rede. “Sempre deixamos filmar nossos espetáculos porque esses vídeos na internet são um auxílio gigantesco de divulgação”, diz Jovane, o homem que já foi frentista de posto de gasolina, ajudante de pedreiro e beneficiador de arroz até passar no vestibular de Artes Cênicas sem nunca ter visto uma peça na vida. “Por exemplo, fizemos o esquete do Joseph Klimber no Programa do Jô e esse vídeo já foi visto umas 20 milhões de vezes no YouTube. Na época, a gente já viajava o Brasil, mas depois passamos de teatros para casas de shows”, agora quem fala é Victor, que também é baterista, formou-se em Administração de Empresas e já foi dono de açougue.
A partir de 2001, quando a Cia. saiu do eixo Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo para ganhar o Brasil, os números foram aumentando exponencialmente até chegar a 300 comunidades no Orkut, recordes de venda no Canecão e aos 220 mil espectadores de suas peças no ano de 2008. Por todo esse sucesso, o sexteto sempre estranhou um certo silêncio a seu respeito. “A gente gosta da imprensa”, diz Victor abafando o próprio riso, “mas é que vivemos à margem. Não somos cult. Não somos a Banda Calypso. Ninguém reconhece a gente na rua e, ao mesmo tempo, lotamos qualquer casa de show ou teatro em todo o país”. Coincidência ou não, o contra-regra chega calmamente com uma arma e mostra para alguém. “Aquilo é objeto de cena, viu? Fique calmo”, tranquiliza um debochado Jovane. “Tá tudo bem, viu? É a imprensa. Daqui a pouco a gente chama você de novo”, e o contra-regra some rapidamente. Do outro lado da sala, Pipo, que já foi secretário de uma escola de alfabetização e locutor de rádio, faz exercícios vocais, preparando a garganta e a voz para interpretar Hermanoteu, uma paródia bem brasileira de Jesus Cristo. “Nós somos os famosos não-famosos”, conclui Jovane. Falta menos de uma hora para a peça começar.
Abre parênteses para um caso revelador da dificuldade que instituições, públicas e privadas, têm de rir de si mesmas na Pátria Mãe Gentil. Com a palavra, Victor. “Fomos processados por uma faculdade privada de São Paulo porque uma vez no esquete “Assalto a Gramática”, que é do Notícias Populares, o bandido falava assim: ‘Eu quero um carro blindado, a imprensa reunida e um advogado que não seja formado pela...’, tal faculdade. O mais engraçado é que no dia da audiência, o nosso advogado era formado pela tal faculdade e o deles era formado por uma outra, mais tradicional. Adivinha? O nosso perdeu!”. Para não ter que pagar uma quantia que nem imaginavam existir optaram por um acordo. Estão proibidos de mencionar o nome da faculdade e de outras 80 instituições. Fecha parênteses, enquanto Siri, originalmente formado em Arquitetura, aparece na porta do camarim com uma indisfarçável cara amassada.
Pouco depois quem surge é o produtor da Cia. chamando para a sessão de fotos. Todos vão ao palco e se enfiam entre as cortinas, enquanto canções do Padre Zezinho, escolhidas pelo próprio grupo como música ambiente, e os garçons aguardam a abertura das portas da casa. Vários cliques depois confessam orgulhosos que Bárbara Heliodora, respeitada crítica de teatro, os chamou de “chulos, grosseiros e politicamente incorretos”. Ainda querem colocar a frase como recomendação para algum futuro cartaz do grupo. “A gente respeita os clássicos, mas fazemos peças que tenham a ver ou que façam sentido para o nosso público. E o nosso texto fala deles”, e Jovane abre caminho para refletir sobre o duro ofício de comediante. Após a bola lançada para a grande área, Victor cabeceia: “As pessoas riem de si próprias através da gente. Somos a válvula de escape da sociedade. Levamos torta na cara pelo nosso público”. São comediantes populares no sentido mais cristalino do termo, pois não?
Em espetáculos que combinam observação do cotidiano, crítica social e improviso, a Cia. Os Melhores do Mundo gosta de elencar uma ampla variedade de referências. Estão lá, piada após piada, figuras como Mel Brooks, Casseta & Planeta, Irmãos Marx, Woody Allen, Monty Python, Trapalhões (“Na época que o Didi tinha costeleta”, relembra Pipo com carinho) e o maior de todos, Chico Anísio (“Ele representa muito para gente, é o maior humorista brasileiro de todos os tempos e não é a toa que faz a voz de Deus em Hermanoteu”, é Pipo novamente).
Alheio a gêneros ou subgêneros humorísticos, Pipo chama para si a responsabilidade e assume que para o grupo “existem apenas dois tipos de comédia: a que é engraçada e a que não é”. Assim mesmo, sem rodeios, e faltando cerca de meia hora para o espetáculo ter início. Nada parece estudado nas falas do grupo e a paixão pelo teatro também soa intensa e sincera. “A gente sempre pensou no teatro pelo teatro e não como um meio para se chegar à televisão. O trabalho lá é que serve como um meio de chamar mais gente pro teatro, de popularizar nossas peças”, resume Victor para completar na mesma toada que “na TV é mais difícil fazer piada porque tem mais limites, tem departamento jurídico, porque vive de publicidade e ninguém quer desagradar ninguém. A gente entende isso. Agora, no teatro a gente faz a piada que quer, do jeito que quer e na hora que quiser”.
Como era de se esperar, essa liberdade os deixa particularmente suscetíveis ao patrulhamento do politicamente correto. “Isso mata a comédia porque, afinal de contas, não existe humor a favor de coisa alguma”, sentencia Jovane. Mas o que acha a menina do grupo? Aliás, Adriana, o que uma mulher como você faz entre tipos suspeitos como esses? “Foi acontecendo desse jeito. Mas não estou em todas as peças porque nesse mesmo período tive três filhos. O único problema de ser a mulher do grupo é que ouço muita barbaridade. Eles até aliviam quando vêem que estou chegando. Mas ultimamente nem isso mais acontece. Mas nunca tive problemas com o tipo de humor que a gente faz”. Adriana, que já trabalhou em shoppings e bancos, orgulha-se dos laços de amizade, do respeito e do humor rápido que o grupo criou e cultivou em solo brasiliense para exportação nacional. Faltam dez minutos e todos estão vestidos, maquiados e com os microfones ligados. Um pouco antes do contra-regra avisar que está na hora, Adriana é acometida por um daqueles lampejos de mãe. “Desculpa, acho que a gente falou muito, né? É que é tão raro a gente dar entrevista. É verdade! Não estamos acostumados”, e sorri ligeiramente envergonhada. “Olha, ninguém sabe o trabalho que dá”, desabafa antes de sair pela porta rumo ao palco. Não faz nem cinco minutos e já se ouvem as primeiras gargalhadas. A noite é uma comédia e está apenas começando.
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Um comentário:
Muito boa a entrevista... realmente é difícil ver algo sobre eles escrito! É mais fácil vídeos e fotos...Mas muito interessante a forma como você escreve, você nos coloca em cena, eu li, mas é como se estivesse ali com você e eles! Você põe as reações e piadas deles, o que é muito bom, obrigada.
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