sexta-feira, 7 de maio de 2010

brincando de messias

foi em 1997, ou 1998, que conheci o grupo brincando de deus e quem me apresentou foi um conterrâneo dos cabras, o baianíssimo Walter Hupsel, amigo mais novo dos tempos da sociais na usp. de cara me surpreendi com aquele som melancólico, roqueiro e anglófilo vindo da Bahia. e adorei, claro, afinal ouvi The Smiths por toda minha adolescência. fazia muito tempo que não os ouvia, mas depois que soube que Messias, o vocalista do grupo, estava lançando um ousado disco triplo solo voltei meus ouvidos para o passado. pelo menos enquanto aguardava a chegada de escrever-me, envelhecer-me, esquecer-me (independente, 2010) que comprei pelo site do Messias. aí pensei o seguinte, deixa eu convidar o Salvador - que era como todo mundo chamava o Hupsel naqueles tempos - para falar do brincando de deus e depois apresento o trabalho solo do messias. então, a luz se fez...

evento raro: show da brincando de deus em dezembro de 2009 em registro de thiago fernandes (foto retirada do blog quase concreto)

A Maiúscula brincando de deus
por Walter Hupsel

“ô ô ô ô... aqui em Salvador, a cidade do axé, a cidade do horror!”. Nos idos da década de 1980, quando a indústria do axé music ainda caminhava, a iconoclastia do Camisa de Vênus disparava sua verve contra a música baiana que embelezava a pobreza, que ufanava a cidade, que reinventava uma invenção antiga, o tal Baiano, invenção de Jorge Amado e de Caymmi. Mas agora éramos bonitos, rebolativos, alegres, como um povo feliz e pacífico deveria ser, orgulhoso de suas ladeiras, de sua negritude falsa. Este axé saia dos bairros nobres de Salvador e transformava e reificava o samba-reggae do povão, punha harmonias e melodias pops onde antes era pura percussão. Se o Olodum cantava a história negra com uma certa raiva, conclamando à revolta, o axé branco dos blocos de carnaval pediam pra “abrir a rodinha”, logo depois pedindo festas e mais festas.

Para quem via Salvador com certa desconfiança, quem era um outsider naquela maravilha tropical, encontrou sua expressão nos riffs punks com letras ácidas de Marceleza e afins. O Camisa sintetizava a revolta contra uma cidade que pensava em se exportar como capital da beleza, da jovialidade, da sensualidade pueril. E lá fomos nós, correndo o risco, gritar contra o Eldorado que insistiam em nos dizer que éramos. Uma década depois houve uma outra revolução na nossa música.

O axé era produto exportação para israelenses, italianos e paulistas. A indústria do axé, ou Máfia do Dendê, ficou ainda mais forte, acabando com quase todos os espaços para shows, excluindo das rádios a música roquenrou. A pasmaceira voltava a reinar na cidade onde o sol era sempre mais amarelo.

Sei lá, este é um texto bem impressionista, no pior sentido da palavra. Escrevo como me sentia na época, eu e outros garotos que mal e porcamente viram o Camisa. Assim, sinto que o começo da década de 1990 era mais ou menos como se sentiam os ingleses ouvindo roque progressivo e dizendo: “este não sou eu!!!”.

Isso mesmo, estávamos na antesala de uma nova revolução na música baiana. Não sabíamos, mas estávamos. Várias bandas apareceram de súbito e entre elas estavam o Dr. Cascadura, com uma pegada bem hard rock, setentista até; a punk Inkoma, primeira banda de Pitty; Dead Billies, um Cramps criado a sarapatel; e o motivo deste meu texto: uns loucos, insanos, uns meninos que, olhando para o sol lindo e brilhante de Salvador, para arquitetura barroca portuguesa, para as praias mais belas do mundo (só perdendo pra Padang Padang) preferiam dizer: sou de Londres, sou do smog, não sou alegrinho, sou um rei sóbrio de um país chuvoso. Os meninos não eram joviais, coloridos. Eram velhos.

Era isso que precisávamos!!! De velhice! De barulho, microfonias e poesias! De não ter vergonha da melancolia, de corações realmente partidos.

A brincando de deus (sim, sim... em minúsculo) unia a Baía de Todos os Santos ao Canal da Mancha. Não consigo esquecer a magnífica capa do
Better When You Love (Me), singela, triste, poética. Uma linda foto de uma linda menina abraçada com um urso de pelúcia. Semblante sereno, tranquilo, mas não alegre, efusivo.

E dentro da capa a coisa só melhorava. “Spleen”, “De Profundis”, “Tweedledum”. PORRA, MESSIAS!!! Seja lá o nome que querem por... indie, guitar band, noise... só sei que era música de primeira qualidade, mesmo, com riffs matadores, com barulho milimetricamente colocado, microfonias que nos deixavam em estado de profunda contemplação... e tudo isso misturado com Baudelaire, Oscar Wilde, Lewis Carroll.



Que Caetano Veloso, e Cury, me perdoem. Para aquela geração de soteropolitanos deslocados do clima reinante da cidade, que começavam a ouvir Sonic Youth, Jesus and Mary Chain e My Bloody Valentine... nem João e nem Frank Black, a brincando de deus (porra, é assim mesmo, minúsculo) é que era a música em estado bruto!
[o Cury aqui citado é Ricardo Cury, baterista da formação mais recente da banda, que ouviu da boca de Caetano a seguinte frase “João Gilberto é como o Pixies. Conhece o Pixies? Então, é música pura, estado bruto”; texto aqui]

E ia além. O saudoso bar Vicious, na Barra, onde a brincando de deus tocava, onde Joe
[baixista da Dead Billies, hoje de Pitty] era garçom, foi o palco ideal, o casamento perfeito. Um lugar escuro, com uma área pra show minúscula, vertia, escorria atitude e beleza. Beleza encarnada no velho e saudoso Rickenbacker de Dalmo [primeiro baixista do grupo]. Lá na Barra, no Vicious, foi onde a geração carente de boa música a reencontrou. A brincando de deus nos descortinou um novo mundo, escondido há tempos.

Salvador não era Boston, muito menos Londres, mas de alguma maneira nos sentíamos parte deste mundo. Aquele era eu, aqueles éramos nós!

E tudo isso graças a Cézar, Messias, Dalmo, Quinho
[irmão de Dalmo e primeiro baterista do grupo]. A eles só posso agradecer, com pureza d’alma. Obrigado Brincando de Deus, obrigado!!!



tá vendo? nada do que pudesse escrever teria esse sabor de quem esteve lá, de quem viu e ouviu ao vivo, de quem trocava ideias com os caras. mas o brincando de deus não acabou, apesar dos hiatos produtivos e de um trágico incêndio em 2000 que transformou em cinzas muitos dos áudios, fotos e tantos outros materiais da banda. de qualquer forma, e apesar de tudo, messias está entre nós com um disco belo, caseiro, simples nos arranjos (afinal, é rock'n'roll, certo?), ousado na proposta conceitual (
escrever-me é o título do disco 1, envelhecer-me do disco 2 e esquecer-me do 3), familiar aos fãs do brincando de deus e internamente inovador ao adotar algumas programações eletrônicas (quase sempre à cargo de andré t, o braço direito de messias no disco). os amigos da banda participam em algumas poucas faixas, mas no geral messias está sozinho fazendo sua música, ou pelo menos com a companhia de andré.

messias em foto de beatriz franco no parque trianon em janeiro deste ano

outro ponto interessante desse trabalho do messias são as músicas com letras em português. já devo ter dito em alguma lugar daqui que não tenho problema algum com letras em inglês, mas é que invariavelmente acho que bandas ou artistas que começam assim acabam se tornando mais relevantes/interessantes quando escrevem em português (vide exemplos recentes com o vanguart e a mallu magalhães). então, para apresentar o escrever-me, envelhecer-me, esquecer-me pincei 3 das melhores músicas, que não coincidentemente são na nossa língua, entre as 32 dos trio de discos (todas compostas por messias). uma de cada disco. 

a primeira, do escrever-me, é uma das mais bonitas e doloridas. com vcs, "Avenida Contorno".


do envelhecer-me vem "Ens Perfectissimum".


e pra encerrar, do esquecer-me, a bela "Vésperas".



p.s.: olha, recomendo totalmente que se compre esse disco. porque é muito bom, tem um encarte caprichado e é triplo (tudo isso pela bagatela de 36 reais, 35 do disco mais 1 de frete). saca só o meu.

e dá-lhe Messias, no trabalho e em casa

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