esta e as outras três fotos desse post são do amigo henrique parra e fazem parte da entrevista para o gafieiras
A história da música brasileira é repleta de talentosos artistas totalmente ignorados pelas gravadoras, pela imprensa e, consequentemente, pelo público. A lista é extensa e cresce geração após geração, salvo raras exceções como a recente “descoberta” do grande Moacir Santos. O maestro pernambucano faz parte de uma turma de músicos brasileiros que durante a década de 1960 saiu do Brasil somente com passagem de ida para os Estados Unidos, um tanto pelo grande sucesso mundial da bossa nova, e de sua vertente instrumental, o samba-jazz, e outro tanto pelo golpe militar de 1964. Dessa turma despontam nomes como Astrud Gilberto, Flora Purim, Eumir Deodato, Oscar Castro-Neves, Airto Moreira, Sérgio Mendes, Bola Sete, Dom Um Romão e Raul de Souza. Mas de todos estes, Raul é uma história à parte por ser referência viva de um dos instrumentos mais importantes da sonoridade musical brasileira, o trombone.
Filho de um pastor protestante e carioca do subúrbio de Campo Grande do ano de 1934, Raul ainda era João José Pereira de Souza quando levou a nota máxima por três vezes seguidas no programa de Ary Barroso. O próprio Ary o expulsou do programa que, afinal de contas, era para calouros, mas não sem antes dizer que João José não era nome de trombonista. E João José foi expulso já como Raulito, nome dado por Ary. Mais tarde, Raulito se transformou em Raulzinho e depois em Raul de Souza. Sempre de trombone ao lado, pelo menos desde os 16 quando aprendeu a tocar o instrumento na banda da Fábrica de Tecidos Bangu após tentar a tuba. Depois da banda da fábrica caiu na noite e tocou em inúmeras gafieiras cariocas onde ouviu os mestres Nelsinho, Astor e Edson Maciel, o Maciel Maluco.
Começou assim, na noite, a surgir seu estilo rápido e cheio de balanço que foi registrado pela primeira vez em 1957 no LP Samba em Hi-Fi do grupo Turma da Gafieira (turma de músicos como Baden Powell, Edison Machado e Sivuca). Esta união de mestres em seus instrumentos foi apenas o começo e Raul de Souza iria muito mais longe ao levar seu trombone de gafieira para grupos menores, sendo um dos pilares sonoros do samba-jazz no início da década de 1960. Com a palavra o jornalista e produtor musical Arnaldo DeSouteiro, dono do selo internacional Jazz Station Records: “Considero o Raul de Souza, como escrevi ao produzir o relançamento de À Vontade Mesmo [disco de estréia solo de Raul em 1965], o mais completo, versátil e expressivo trombonista brasileiro. Qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento musical o reconhece como um dos dez melhores trombonistas do mundo em todos os tempos”.
O Brasil parecia que ia dar certo antes do golpe militar e o Rio de Janeiro fervia no caldeirão da bossa nova. Raul de Souza fez parte do grupo Bossa Rio que acompanhou Sérgio Mendes em shows e no disco Você ainda não ouviu nada! (1963) e tocou com Paulo Moura, João Donato e os grupos Trio 3D (de Antônio Adolfo) e Os Cobras (de Tenório Jr. e Milton Banana). No final da década de 1960, pouco antes de sair do Brasil e já sobre o autoritarismo dos militares, Raul se juntou ao grupo A Turma da Pilantragem ao lado de Zé Roberto Bertami e Márcio Montarroyos e chegou a participar da banda que acompanhava Roberto Carlos em apresentações na TV (o Rei, segundo o trombonista, lhe deve dinheiro até hoje).
No início de 1969, logo após o decreto do AI-5, Raul de Souza aproveitou o convite de Airto Moreira e Flora Purim e saiu do país rumo ao México para uma série de shows. De lá foi para os Estados Unidos onde morou em Boston para depois fixar residência em Los Angeles, onde começou a tocar com artistas como Sarah Vaughan, Sonny Rollins, Cannonball Adderley, Freddie Hubbard, Frank Rosolino, Jimmy Smith, Chick Corea, Ron Carter, George Duke e Lionel Hampton. Durante a década de 1970 aconteceu um pouco de tudo com Raul de Souza, desde álbuns elogiados como Colors (1975) e Sweet Lucy (1977) até equívocos como um mergulho na disco music em ‘Til Tomorrow Comes (1979), passando por um acidente que quase lhe custou a carreira, a invenção de um trombone elétrico com quatro válvulas (o souzabone) e o título de cidadão honorário de Atlanta, Geórgia. Segundo DeSouteiro, o auto-exílio de Raul “ampliou seus horizontes estéticos e o fez aprender que a música de qualidade é universal e não tem fronteiras. Sem a ida para os EUA o Raul não teria sido incluído, por exemplo, na Encyclopedia of Jazz in the Seventies, escrita por Leonard Feather e Ira Gitler, os dois principais historiadores do jazz”.
A democracia e Raul voltaram ao Brasil na década de 1980, mas a música brasileira havia mudado muito e aos trancos e barrancos o trombone do carioca passou a acompanhar artistas como Tom Jobim, Egberto Gismonti, Ná Ozzetti e Luiz Melodia. No final da década de 1990 um novo auto-exílio, desta vez na França. “Existem diferenças, infelizmente. Aqui na França tem Universidade tanto para formação de música clássica quanto para o jazz. O músico brasileiro não tem esse privilégio, mas ganha de qualquer maneira pela musicalidade que ele próprio possui”, afirmou Raul de Souza, por e-mail, de Paris. Casado atualmente com uma francesa, Yolene, o trombonista divide seu tempo entre o jazz, a música instrumental brasileira e um recente projeto de fusão de jazz com música eletrônica e funk. Um desses encontros resultou no disco Elixir (2005) que contou com o acompanhamento dos franceses do Claire Michel Group.
Mesmo que sua música não toque em rádios brasileiras e que só consiga lançar seus mais recentes trabalhos, e consequentemente fazer shows, com certa dificuldade no país, Raul não se sente desprestigiado. “O Brasil não trata mal seus artistas. O que acontece é que qualquer um pode dizer que é músico ou artista, mesmo sem ter talento, e a partir daí vem uma falta de respeito com os músicos ou artistas de talento”, diz. De um modo geral, Raul foge de qualquer questão que lide com palavras como dificuldade, ressentimento ou problema. Seu lema parecer ser que tudo está ótimo enquanto puder fazer sua música, mas esta aparente alienação se dissolve quando se toca mais fundo. “Gostaria muito de passar mais tempo no Brasil, espero que isso possa acontecer um dia”, revela discretamente saudoso. A tristeza revelada em uma frase rápida como esta não é por não tocar em rádios ou fazer sucesso comercial, e sim por ter encontrado condições de trabalhar somente no exterior, longe da família, dos amigos e de suas raízes.
Raul de Souza gosta de dizer que a cor do seu som é azul, como está registrado no documentário Viva volta (2005) de Heloísa Passos - mesmo nome do disco que lançou em 1986 para comemorar sua volta ao Brasil depois do primeiro auto-exílio: azul da tristeza do blues, pai e mãe do jazz. Mas contrariando todas as leis da física é um azul quente o que sai de seu trombone. Novamente é DeSouteiro que coloca os pingos nos is ao afirmar que “mesmo que algumas pessoas passassem a vida toda no Brasil, acabariam esquecidas neste país altamente esquisito. Se o artista passa a ter sucesso e visibilidade real no exterior, recebe em troca o ódio e a inveja dos seus compatriotas. Mas, em compensação, ganha o mundo e coloca seu nome na história da música. E, ao contrário do que as pessoas pensam, na hora da peneira da história, o que conta é a notoriedade, não a popularidade”. Ao fundo, o trombone de Raul de Souza teima em gargalhar ruidosamente.
p.s.: de quando esse texto foi feito pros dias de hoje (2009), raul de souza lançou os ótimos jazzmim (biscoito fino, 2006) e bossa eterna (biscoito fino, 2008), este em parceria com joão donato. lá no allmusic também é citado um disco chamado soul & creation (pao, 2007).
5 comentários:
Que maravilha este texto... Adoro o som de Raul de Souza... Será que posta-lo no meu blog?
http://truegroovy.blogspot.com/
abraços...
Groove to the people!!!
aê dj groovy, pode colocar o texto no seu blog sim, com link e crédito aqui pro esforçado. valeu pelo elogio.
Sou um discípulo do grande mestre Raul de Souza! Parabéns pelo texto e pelo resgate da cultura brasileira!
Raul de Souza é um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos!
valeu Aristides, tamos aê.
leu a entrevista do Raul no Gafieiras?
Til Tomorrow Comes tá muito longe de ser um equívoco hein?
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