terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

uma bola oval não precisa de black-tie

gosto de futebol americano. não acompanho, não tenho time, mas gosto. tem algo além da pancadaria que nunca soube explicar, nem pra mim mesmo. um ano atrás, o futebol americano me fez estrear na seção esquina da revista piauí (uma outra versão dessa reportagem saiu na monet). acompanhei um jogo em são bernardo do campo no famoso estádio que viu nascer o lula, o pt e o começo de uma nova democracia no brasil. segue abaixo a versão original (não editada e muito menos revisada) do meu texto.

TOUCHDOWNS NO ABC

“Até que ficou bom, o campo”, pensou em voz alta a mulher de um dos funcionários do Estádio 1º de Maio, em São Bernardo do Campo. Ela não sabia direito o que iria acontecer, nem era de seu interesse. Estava ali apenas para levar o celular de seu marido desmemoriado. Às 11h30 de um ensolarado sábado, 24 de novembro último [2007], o estádio da Vila Euclides, palco de célebres assembléias do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no final da década de 1970 estava recebendo, quase três décadas depois, os últimos retoques para um evento igualmente histórico, pelos menos segundo seus organizadores: o primeiro jogo oficial de futebol americano no Brasil.

Os tais retoques consistiam na finalização da cabine de som e na instalação de uma enorme embalagem inflável de um dos patrocinadores da contenda entre o time da casa, o São Bernardo Cougars, e os visitantes, o Sorocaba Vipers. De jarda em jarda, a pintura do gramado foi feita poucos dias antes pelos próprios organizadores, a Federação Paulista de Futebol Americano (FPFA), o que facilitou o trabalho de reconhecimento dos envolvidos. Todos estavam vermelho-camarão, incluindo o presidente Hugo Bustilho.


“Até chegar esse dia foram precisos dois anos e meio, mas começou a virar mesmo de um ano pra cá. Trabalhando só nisso. Coloquei na minha cabeça que não iria mais jogar para profissionalizar o negócio. É a minha ocupação principal. Antes? Eu era militar, da Força Aérea, fiquei três anos lá e sempre trabalhando com futebol americano”, afirmou Hugo que, aos 26 anos, possui ainda o canudo de Educação Física pela Universidade Metodista de São Paulo. Enquanto tudo vai sendo checado pelo pessoal da federação e um bando de passarinhos dá rasantes no gramado recém pintado, Hugo retoma o raciocínio e dispara, “já gastei muito dinheiro, sei que vou gastar ainda mais, mas coloquei essa meta pra mim. Se até tal dia não conseguir profissionalizar esse esporte no Brasil, vou embora... mas é claro que não conto que dia é esse! Minha família sabe”.

Ainda faltam cerca de quatro horas para a bola começar a rolar. Quer dizer, bola de futebol americano não faz dessas coisas. “Quando era moleque, uns 12 anos, acompanhava um programa da Bandeirantes em que o Luciano do Valle falava dos esportes americanos. Mas só falava quando era final ou início de temporada. Foi assim que descobri o Chicago White Sox de beisebol e o Chicago Bulls no basquete. Adotei a cidade de Chicago como sendo... vamos dizer, aqui sou Santo André no futebol porque nasci em Santo André, mas de futebol não entendo nada... na verdade, eu tinha um boné escrito Chicago e quis torcer para todos os times da cidade. No futebol americano sou o Chicago Bears”, respondeu Hugo com um ouvido nas perguntas e o outro no rádio, à espera dos problemas.

Mesmo com a entrada gratuita, sorteio de brindes e um show ao vivo de um cover de Elvis Presley – táticas indispensáveis para chamar um público que não sabe nada sobre a bola oval -, um evento desta magnitude está sempre sujeito a um probleminha aqui e outro acolá: um grupo de amigas quer dar um passeio no campo e não pode; o pessoal do time de Sorocaba já deveria ter chegado e provavelmente não terá tempo para se aquecer; as esfihas para alimentar as equipes terão que vir de um Habib’s em Santo André por algum motivo desconhecido e nem todos os jogadores possuem capacete, o que inviabiliza o jogo em toda sua plenitude (o uniforme completo, e importado, custa algo em torno de 500 reais). 
O sol continua forte quando os primeiros espectadores se aprumam nas arquibancadas. “Não esquece de falar para o pessoal pegar leve. Isso aqui é entretenimento!”, afirmou Marcos Granado, diretor de marketing e assessor de imprensa da federação, por rádio. O recado foi endereçado aos jogadores do São Bernardo Cougars que tinham acabado de chegar. Hugo balança a cabeça discretamente em sinal de aprovação e volta a relembrar seus tempos de adolescente. “Comecei jogando basquete, mas fui convidado a me retirar... é que arrumei confusão, joguei uma mesa na torcida, mó várzea! Aí a federação não me deixou mais jogar. Joguei rugby por uns seis meses, mas vi que não era pra mim. Queria um esporte que não existia aqui, então comecei a pesquisar. Comecei a jogar futebol americano em 1998, com uns 17 anos”. Entre partidas amadoras no Parque do Ibirapuera em São Paulo, eventualmente organizadas pela Associação Brasileira de Futebol Americano & Flag (ABRAFA), e jogos com amigos em Santo André, Hugo tomou gosto pelo esporte ao ponto de sonhar em organizar a bagunça. “Olha, preciso ir ao vestiário resolver umas coisinhas. Fica à vontade”, e segue estádio adentro.

“Cadê as cheerleaders???”, gritou um dos 30 e poucos integrantes do São Bernardo Cougars antes do time entrar no campo para o aquecimento. O que havia de mais próximo ao pedido era um grupo de dançarinas das Faculdades Integradas de Santo André (FEFISA) que iriam se apresentar no intervalo de jogo. Bastou uma olhadela nas moças para os jogadores da casa capricharem no aquecimento, mesmo depois de terem sofrido nas mãos do DJ que interrompeu uma série de rocks clássicos para colocar “What a feeling” da trilha do filme Flashdance (“Puta música de boiola”, lamentou desolado um dos jogadores). Corrida para lá, lançamento para cá e algumas trombadas bisonhas acabaram servindo de prato cheio para o deboche se espalhar entre os presentes. “Tá com uma havaiana na mão, porra?”, berrou um senhor de boné vermelho. “Que merda! Eu quero é ver os malucos, pá!!!!”, disse um garoto com camisa da seleção brasileira de futebol batendo uma mão na outra.
 Então, é chegada a hora do Hino Nacional. Ouviram e cantaram, às margens plácidas da Vila Euclides, cerca de 300 pessoas, entre famílias munidas de lanches e refrigerantes de 2 litros, jovens casais, turmas de amigos e crianças, uma delas com a camisa do boleiro inglês Beckham e, obviamente, as duas equipes. Esta partida-exibição é a primeira das quatro etapas do Circuito Paulista de Futebol Americano, uma espécie de laboratório para o primeiro campeonato oficial, a ser realizado em setembro deste ano [2008, e que acabou não acontecendo], e que ainda contará com o Santo André Huskies, o Mauá Wild Horses, o Itatiba Priests, o Santos Black Sharks e os paulistanos Sampa Red Warriors e Hades Nightmare. Enquanto o jogo não começa e a organização dá início ao sorteio de brindes, o cover de Elvis Presley [foto acima] domina o microfone, canta versões de músicas como “Suspicious Mind” e ainda arranja fôlego para ameaças bem humoradas do tipo: “Se não aplaudirem eu canto de novo!”.

Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo. Hugo, o presidente da federação, está de roupa trocada e daqui em diante é o principal juiz da partida. O time da casa não consegue se encontrar e o primeiro tempo acaba com um placar de 19 X 0 para os visitantes. Desesperados com o sacode, alguns jogadores do Cougars xingam o juiz e um deles, mais afoito, solta um “não quero passar vergonha em casa... vamos bater nesses caras!!!”. Mas a casa não queria mais saber deles e, aos brados e risos, um grupo de amigos repetia um mântrico “Ahá! Uhu! Vá tomar no Cougars!”.



O segundo tempo não poderia ser pior para o time da casa. Mais penalizações, expulsões e uma nova saraivada de touchdowns dos visitantes. Era fim de tarde e boa parte do público tinha saído no intervalo para cuidar de sua vida. Mas essa gente não viu o banho que o Vipers levou quando o relógio bateu 6 da tarde e as mangueiras que regam o gramado ligaram automaticamente logo atrás de seu banco de reservas. Também não viram o pequeno cachorro do vigia entrar no campo e encrespar com um jogador do Cougars. Nem ficaram sabendo que o placar final foi 41 X 0. “O grande barato? É o jogo completo. A estratégia, a força, tudo. É um jogo de cabeça, né?”, explicou Hugo, aliviado por ter conseguido produzir a primeira e heróica cabeçada do futebol americano no Brasil.


olhaí o são bernardo cougars (de azul) tentando algo

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